Há 38 anos, a arquiteta e urbanista Regina Bienenstein luta por moradia digna, acesso à terra infraestruturada, regularização fundiária e urbanística de assentamentos populares e habitação de interesse social. Este ano, ela foi escolhida Arquiteta e Urbanista do Ano, na 16ª edição do prêmio da Federação Nacional de Arquitetos.
Formada em arquitetura e urbanismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), é mestre pela Universidade de Syracuse (EUA) e doutora pela Universidade de São Paulo. Atua como professora titular do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense (UFF). Participou da criação e, atualmente, é coordenadora do Núcleo de Estudos e Projetos Habitacionais e Urbanos (Nephu) da UFF. Foi presidente do Núcleo de Niterói do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) na década de 70. Nas últimas eleições, foi eleita primeira suplente a vereadora na cidade de Niterói.
Ao CAU/RJ, ela falou um pouco de sua trajetória, das lutas por habitação popular e da surpresa de receber o prêmio aos 78 anos.
Regina, poderia compartilhar um pouco da sua trajetória?
Eu me formei pela UFRJ. Nessa época só tinha arquitetura, aqui no Rio, na UFRJ, era a quinta universidade do Brasil. Alguns anos depois eu fiz o mestrado, fiz fora. Quando eu voltei, optei por me ligar a uma arquitetura desenvolvida em órgãos públicos, mais voltada para a parte de planejamento. Eu fiz o plano diretor de Casimiro de Abreu e comecei a dar aula na Universidade Santa Úrsula, sempre com preocupação com as desigualdades enormes que existem nas nossas cidades. Eu já tinha feito arquitetura voltada para projetos, para a classe média, e não queria mais fazer isso. Eu tinha que encontrar um caminho para exercitar o que eu pensava sobre a sociedade, sobre a responsabilidade social do arquiteto e, então, eu fiz concurso para a UFF.
Comecei a dar aula na UFF na disciplina de habitação. O curso de arquitetura da UFF tem duas disciplinas obrigatórias que tratam de habitação de interesse social, uma teórica e outra prática. Eu dava aula de projeto de habitação popular e meus alunos iam para campo, para as áreas populares, para fazer projeto. O nosso desafio era o diálogo e a contribuição para as áreas populares, como iríamos fazer para a produção dos alunos não ficar restrita à universidade. A gente tinha que começar a formar arquitetos que dialogassem e reconhecessem esses espaços como espaços da cidade. Era década de 80 e a gente ainda estava na ditadura militar.
Antes disso, eu comecei a atuar no IAB no núcleo de Niterói, onde cheguei a ser presidente. Abrimos o IAB para a população discutir a cidade e as propostas que estavam sendo colocadas. Na época havia um projeto para privatizar a praia de Camboinhas e o IAB ficou muito conhecido. A solicitação de assessoria da Favela do Gato chegou primeiro ao IAB de Niterói e nossos ex-alunos encaminharam o pedido para a UFF.
Esse trabalho começou em 1983. Eles estavam ameaçados de remoção total por causa da BR 101. A parte não atingida [pela rodovia] permaneceu, são proprietários, e a parte que teve que ser reassentada participou do projeto. Esse projeto ficou conhecido de outras associações e ficou muito evidente que a assistência técnica é um serviço necessário e demandado pela população.
Como se deu a criação do Núcleo de Estudos e Projetos Habitacionais e Urbanos da Universidade Federal Fluminense, o Nephu?
O Nephu faz pesquisa, extensão e formação. Nós tínhamos algumas premissas. Primeiro: que habitação e cidade não é um campo restrito do arquiteto. O arquiteto sozinho não dá conta. A gente precisa ter equipes que integrem outros profissionais e seus conhecimentos na sua ação, uma equipe interdisciplinar. Depois, que esses espaços são produto do trabalho cotidiano do trabalhador, são legítimos e devem ser mantidos e melhorados. A gente deve, sim, levar os serviços e infraestrutura, os benefícios que a vida urbana oferece e que, em geral, não estão presentes nesses espaços populares.
A outra grande mudança foi na disciplina. Em vez de a gente dar desafios para os alunos desenvolverem projetos, escolhidos aleatoriamente, passamos a atender as demandas da população. Com isso, criamos uma interlocução muito forte com as comunidades de Niterói, São Gonçalo, Itaboraí. Trabalhamos no Rio também. A gente não parou mais porque as demandas estão aí. A cidade não mudou. Pelo contrário, cada vez mais as condições para a classe trabalhadora pioram. A gente acredita que está cumprindo, por um lado, a responsabilidade do arquiteto e, por outro, da universidade pública.
São 38 anos e a não teve um período em que a gente não trabalhou. A gente já trabalhou com grande parte das associações e áreas populares de Niterói. No Rio, participamos da luta da Vila Autódromo, do Arroio Pavuna, entre outros.
Com a pandemia da Covid-19, a importância da moradia digna ficou ganhou ainda mais evidência. Como o Núcleo atuou durante esse período?
A situação que a gente já conhecia passou a ser conhecida pela cidade formal. Moradores dessa “outra cidade” passaram a ver como a classe trabalhadora mora, em que condições. Sem acesso às formas de prevenção recomendadas. Eles andaram em transporte coletivo cheio porque é mais importante atender as demandas das empresas do que as do trabalhador. Como lavar as mãos com frequência, se a rede de água não chega nesses territórios? Como manter o afastamento social com alta densidade? Ficou muito clara essa face da cidade.
Nesses 38 anos de trabalho, desenvolvemos um diálogo permanente com moradores e lideranças de áreas populares. Já fazíamos reuniões quinzenais, até semanais, dependendo da época. A pandemia fez com que a gente tivesse que encontrar uma outra forma de manter esse diálogo e buscar formas de enfrentar, além do problema da moradia, o problema da fome, o aumento do desemprego. A gente começou com ações de solidariedade ativa junto com outros grupos e a gente vê como é necessário. Mas enquanto a gente está fazendo isso, Niterói está discutindo uso e ocupação do solo aumentando gabarito, fazendo projetos para beneficiar áreas que já estão urbanizadas. Nada acontece na parte popular da cidade.
Essa visão de responsabilidade da universidade, dos arquitetos, de todos os profissionais não é uma unanimidade. Você vê muitos arquitetos defendendo uma cidade voltada para os negócios, para quem pode pagar. Nosso trabalho não se desenvolveu sem embates.
Você trabalha há muitos anos com habitação popular. O que acha que poderia ser feito para que a lei de Athis fosse, de fato, implementada e para a garantia de moradia digna para a população? O que precisa mudar?
Fica cada vez mais claro que não é por falta de lei, é falta de vontade política. É a visão que os donos do poder têm sobre a cidade e como ela deve ser. Estamos com muita coisa por fazer. Temos uma lei federal, mas não temos leis municipais. Eu fui candidata à vereadora nas últimas eleições, eu sou primeira suplente. Eu fui vereadora por um mês. A cidade popular não está na pauta. Fala-se dela, mas em termos de ações concretas, da questão da habitação de uma forma mais abragente, não. Eu apresentei um projeto de lei de Athis para criar o serviço como política pública, mas isso nunca entrou na pauta.
Eu acho que, por um lado, nós temos que ter um movimento popular pela moradia forte. Temos um movimento, mas ele ainda não é forte o suficiente para mudar esse cenário. Temos que incluir, de uma vez por todas, a questão da moradia de interesse social como disciplina obrigatória no currículo dos cursos de arquitetura e em outros cursos, como engenharia, geografia e serviço social. É importante o papel do CAU nessa discussão. E não só nas universidades públicas, nas privadas também. E continuar dando apoio às lutas populares para ver se, um dia, a gente pode mudar essa visão de que a cidade não é para todos.
O que significou ser indicada Arquiteta do Ano pela FNA?
Eu quase caí pra trás! Não é só a Regina que está sendo premiada. Um trabalho individual não é realizável. A minha atuação é coletiva sempre. Divido essa premiação com todos os meus pares durante esses anos, com a equipe que acredita nesse trabalho. Eu nunca acreditei que fosse ser arquiteta do ano. Me senti super gratificada nessa altura da minha vida, aposentada, com 78 anos. Estou com um sorriso de orelha a orelha permanente. Divido com meu alunos também, que me dão incentivo para continuar. A maior parte deles não tem bolsa e continua porque acredita no trabalho. O prêmio só vai contribuir para atrair mais profissionais sonhadores com uma sociedade democrática e inclusiva.