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Caos Planejado: Quais deveriam ser as prioridades para o urbanismo brasileiro?

Escrito por Anthony Ling

O urbanismo brasileiro vive hoje uma brutal inversão de prioridades. Urbanismo, até o início do século 20, tinha como papel fundamental desenhar e reservar espaços e equipamentos públicos fundamentais para a expansão urbana. Lembremos de exemplos clássicos de cidades como Washington, Nova York, Barcelona e Buenos Aires. Essa tradição vinha sendo carregada desde o período clássico, com exemplos como Mileto, na Grécia Antiga, ao planejamento de cidades como Roma, que era focado nas principais infraestruturas e monumentos públicos da cidade. Mesmo a histórica remodelação urbana de Paris levada adiante por Haussmann no final do século 19 focou principalmente no redesenho dos espaços públicos, sem uma definição de usos das edificações privadas. Projetos urbanos em Londres, como a remodelação da Regent Street por John Nash, tinham o mesmo caráter. Para o bem ou para o mal, essa prática era emulada no Brasil até o início do século 20, sendo alguns exemplos o plano de Aarão Reis para Belo Horizonte e a Reforma de Pereira Passos no Rio de Janeiro, considerado o “Haussmann carioca”.

Mapa do Plano de Aarão Reis para Belo Horizonte. Imagem: Prefeitura de Belo Horizonte

Nossos centros históricos se desenvolveram sob essa filosofia, com edifícios de todos tamanhos, formatos e usos, e continuam tendo, até hoje e apesar do seu declínio, os espaços públicos mais vibrantes das suas respectivas cidades.

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A introdução de diferentes correntes de planejamento no início do século 20, desde as “cidades jardim”, concebidas no Reino Unido, até a adoção do zoning (ou zoneamento) norteamericano e a utopia modernista europeia de total controle do espaço construído levou à gradual regulação do espaço privado na prática do planejamento de cidades. No Brasil, planos diretores foram introduzidos na segunda metade do século 20 inspirados nesses conceitos. Como reação ao crescente controle sobre o espaço construído privado, a indústria privada da construção civil passou a ter protagonismo no desenvolvimento desses planos, que focavam a sua atenção cada vez mais no espaço privado e menos no espaço público.

Atualmente, os planos diretores, aliados às leis de zoneamento e de uso e ocupação do solo, evoluíram para os famosos “planos sem mapas”, descrição do urbanista Flávio Villaça, com efeito prático basicamente na definição de índices e regras construtivas para cada lote da cidade. Essa regulação do uso do solo no Brasil tem tido inúmeros impactos detrimentais nas cidades, como a redução do acesso à moradia, o aumento da informalidade, o aumento do espraiamento das manchas urbanas (e, consequentemente, das distâncias de deslocamento), e a destruição da caminhabilidade e da vida urbana das nossas ruas, com zonas monofuncionais e edificações isoladas nos terrenos, afastadas dos pedestres e, na maioria das vezes, cercadas ou muradas. Não surpreende que estudos sobre a regulação do uso do solo no Brasil estejam alinhados aos resultados de pesquisas internacionais semelhantes.

O nível de desconexão da prática atual do urbanismo no Brasil com as raízes da prática urbanística clássica é assustador. Quando é feita uma crítica à regulamentação de uso e de forma das edificações por lote, a reação de muitos é frequentemente extrapolar a premissa, entendendo que isso seria a antítese do planejamento urbano, onde haveria liberdade total e toda a cidade seria definida por processos de mercado, ou mesmo que isso significaria “menos estado” na regulação das cidades. Essa premissa, no entanto, é uma falsa suposição a partir de um olhar viciado nas práticas atuais do que significa planejamento urbano.

A principal discussão urbanística do país, desde o que passa no Executivo Municipal e na Câmara de Vereadores durante o desenvolvimento de um Plano Diretor, até os principais veículos de comunicação do país sobre o tema, é a regulação dos espaços privados. Que altura ou forma os edifícios podem ter; quantas vagas de garagem podem ter; quanta área se pode construir em cada terreno; e trivialidades sem qualquer impacto urbano na cidade, como a dúvida se áreas de varanda devem ou não contar como área construída em uma determinada edificação. Essa discussão não utiliza evidências técnicas para definição de tais parâmetros, sendo o debate gerado a partir da percepção subjetiva dos atores (prédios altos são bonitos ou são feios, afinal?) e, ainda, se limita às áreas mais ricas das cidades, sendo que uma parcela significativa da população brasileira mora em favelas que não seguem qualquer uma das regras sendo discutidas.

Estratégias Ilustradas do Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo, de 2014. Imagem: Prefeitura de São Paulo

A descrição da prática urbanística brasileira atual deveria gerar indignação e arrepios sob qualquer avaliação pragmática, mas é a que segue em toda revisão de plano diretor ou mudança em lei de zoneamento das nossas cidades. Criticar a prioridade dada à regulação do espaço privado, no entanto, não tem relação alguma com a ausência do poder do estado, mas sim com um retorno às prioridades clássicas do planejamento urbano.

É preciso de um poder regulador muito capacitado, presente e com uma excelente equipe técnica – inclusive mais robusta que a maioria das cidades brasileiras atualmente possuem –  para exercer outras prioridades que foram praticamente esquecidas. Atividades como (mas não limitadas a):

– Desenho da expansão do espaço viário e de espaço reservado para parques;

– Regularização e urbanização de favelas, com projetos de urbanismo social e reajuste fundiário de terras;

– Implantação e gestão de infraestrutura viária, com alocação e desenho de espaço para calçadas, canteiros, ciclovias, corredores de ônibus e faixas carroçáveis;

– Regulamentação do uso do espaço viário, que abrange desde regulamentação e fiscalização de transportes alternativos e circulação de ambulantes até medidas de taxa de congestionamento e de fiscalização de trânsito;

– Expansão e gestão de linhas de infraestrutura, tanto de superfície como subterrâneas, de transporte de massa, saneamento e telecomunicações;

– Gestão de operações ou concessões de transporte de massa;

– Gestão de resíduos;

– Iluminação pública;

– Obras e estratégias de drenagem urbana;

– Definição, fiscalização e gestão de áreas de preservação natural;

– Definição e elaboração de estratégias para preservação efetiva de edificações de valor arquitetônico histórico para a cidade;

– Manutenção e gestão da arborização e de parques e praças.

É preciso, ainda, de uma central de dados para elaboração de indicadores e métricas para embasar a tomada de decisão em todas essas frentes de forma técnica, podendo inclusive testar diferentes soluções urbanas medindo seu impacto em tempo real na cidade.

Rua atingida pela chuva no Rio de Janeiro. Foto: Prefeitura do Rio de Janeiro

Qualquer morador de cidade brasileira que se depara com essa lista consegue perceber o fracasso que seu município provavelmente tem nessas frentes. Infelizmente, a realidade é que nenhum desses pontos é prioritário nas discussões urbanísticas atuais. Enquanto é “escandaloso” o tema da altura de edifícios ao lado de estações de metrô nos bairros mais ricos do Brasil, se tornou natural o fato de que, apenas na cidade de São Paulo, cerca de 1 milhão de pessoas moram em favelas, com condições habitacionais precárias que não seguem nenhuma regulação de uso do solo e gastam quase 4h do seu dia com deslocamento.

Diferente de terrenos privados que, por sua vez, possuem responsáveis diretos e um processo de mercado para seu planejamento – arquitetos, engenheiros, investidores, corretores, clientes, usuários, etc. – as atividades de planejamento mencionadas não possuem, na sua essência, nenhum outro responsável senão o município para a sua definição e gestão. São para elas que precisamos nos voltar não apenas como urbanistas, mas como cidadãos em busca de cidades melhores.

Via Caos Planejado

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