Escrito por Roberta Inglês
Quando foi criado, o automóvel parecia, de fato, ser a solução para diversos problemas urbanos da época. Com o crescimento das cidades e a revolução industrial, a ideia de ter um meio de locomoção mais rápido e que eliminasse a necessidade de transporte a cavalo — que trazia como consequência mais sujeira e proliferação de doenças nos centros urbanos — era muito atraente.
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No urbanismo modernista do século 20, com os automóveis já mais difundidos e acessíveis, o louvor ao uso do carro particular se apoiava na possibilidade de diminuir as densidades populacionais que geralmente eram colocadas como a razão da insalubridade das grandes cidades. Com o carro, era possível afastar as construções e as pessoas umas das outras, criando grandes vazios ou áreas verdes, uma forma de planejar o espaço que fica muito evidente na cidade de Brasília, por exemplo, e no conceito da Cidade Jardim do urbanista inglês Ebenezer Howard, que tinha como objetivo unir os benefícios da vida na cidade com os da vida no campo.
Hoje é possível notar que essas utopias urbanas tiveram um resultado diferente do esperado. Com o crescimento das cidades e o uso em massa do automóvel particular, surgiram problemas direta ou indiretamente associados, como: congestionamento e longas horas de deslocamento diário; poluição; sedentarismo; isolamento social; mortes e ferimentos de pedestres, ciclistas e motoristas. Atualmente, 1 a cada 34 mortes no mundo é causada por automóveis.
Após as experiências negativas do planejamento urbano do século 20, conclui-se que em centros urbanos de alta demanda é importante permitir uma maior densidade populacional e mistura de usos para que a mobilidade seja facilitada e as pessoas possam realizar suas atividades a pé, de bicicleta ou por meio do transporte coletivo no seu cotidiano. Isso promove saúde física, conexão interpessoal e com o ambiente, mais segurança e vida nas ruas, menos tempo de deslocamento, entre outros fatores que contribuem para a qualidade de vida.
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Infelizmente, em muitos países ainda é comum a gestão urbana priorizar e facilitar o uso do carro, desconsiderando suas desvantagens. Diante disso, a fim de alertar sobre os perigos da utilização em massa do automóvel, o artigo Car Harm (ou “dano do carro”), de Patrick Miner, Barbara M. Smith, Anant Jani, Geraldine McNeill e Alfred Gathorne-Hardy, lista, a partir de dados concretos e uma vasta revisão teórica, diversas externalidades e consequências disso, resumidas a seguir.
Mortes e enfermidades
Embora as tecnologias de segurança tenham melhorado nos últimos anos, os acidentes de trânsito ainda matam 1,3 milhões de pessoas por ano e são a oitava maior causa de mortes no mundo, segundo a OMS. Para pessoas entre 4 e 30 anos de idade, eles são a principal causa de morte. E, anualmente, 1 a cada 80 pessoas sofre ferimentos por acidente de trânsito.
Mortes e perdas em guerras também podem ser associadas a um planejamento focado no carro. Apesar dos conflitos terem causas complexas, um dos estudos estimou que 25 a 50% das guerras interestaduais desde 1973 tiveram como uma das motivações o acesso a petróleo, matéria da qual os veículos motorizados são, de longe, os maiores consumidores.
Anualmente, aproximadamente 246.000 mortes no mundo são atribuídas à poluição do ar associada aos automóveis. Além dos gases emitidos na combustão, podemos citar como poluentes do meio ambiente os materiais utilizados nos pneus, freios, óleos lubrificantes, pavimentação asfáltica, etc. São diversos elementos que contribuem com o surgimento de enfermidades nos seres humanos.
O uso do carro ao invés de uma mobilidade ativa incentivou, ao longo dos anos, um estilo de vida mais sedentário, que está associado a diversas doenças cardiovasculares, câncer, diabetes, entre outras. Além disso, em cidades onde há uma dependência do carro, existe um isolamento maior das pessoas tanto em relação ao ambiente ao redor quanto em relação ao convívio com outros. Para muitos, o dia se resume a estar dentro de casa ou dentro de um escritório ou escola, e o tempo em que o indivíduo não está em um desses locais, está dentro de um automóvel, isolado do ambiente externo. Esse isolamento também é um potencializador de doenças físicas e emocionais, além de deteriorar a qualidade de vida.
Injustiça social
Os danos causados por automóveis não afetam uniformemente os diferentes tipos de pessoas. Os acidentes com automóveis matam, desproporcionalmente, muito mais crianças do que adultos e muito mais negros e indígenas do que brancos. Quando sofre um acidente, uma mulher tem 47% mais chance de ter ferimentos graves do que um homem, e 17% mais chance de não sobreviver. Pessoas com menor renda, apesar de terem índices menores de posse e utilização de carros particulares, têm mais chance de morrerem em um acidente de trânsito do que pessoas ricas. Pessoas com deficiência também são mais propensas a sofrerem consequências graves em acidentes automotivos, além de que algumas estruturas criadas para carros nas cidades prejudicam a acessibilidade nas calçadas.
O planejamento urbano centrado no carro fez com que muitos espaços da cidade fossem destinados a rodovias e estacionamentos, além de incentivar uma maior dispersão das pessoas, que se espalharam ocupando um território maior. Com esse controle para manter uma densidade menor, muitas pessoas, principalmente as com menos recursos financeiros, não têm outra alternativa a não ser morar longe das oportunidades de emprego e ter que enfrentar longas horas para se locomover diariamente. Há uma desigualdade no tempo em que pessoas com renda maior ou menor gastam em seus trajetos diários.
Além disso, o espaço que os carros ocupam, por exemplo, com vagas de garagem, poderia ser utilizado para viabilizar mais moradia em áreas centrais de alta demanda. O espaço médio de moradia por pessoa na China, Coréia do Sul, Espanha, Índia, Brasil, México e Polônia é menor ou igual à área que uma vaga de estacionamento geralmente ocupa (25-33 m²).
Danos ambientais
Os automóveis são a principal causa das mudanças climáticas atualmente. Apesar do esforço para uma mudança para os veículos elétricos, é importante ressaltar que as emissões de carbono geradas por carros não se concentram somente no combustível, mas também estão no seu processo de fabricação e na construção e manutenção de infraestruturas para automóveis na cidade, problemas que os carros elétricos são incapazes de resolver. Ainda, o acesso às matérias-primas necessárias para a fabricação dos veículos, como os petroquímicos que formam os plásticos, acarreta em atividades de intervenção no meio ambiente que agravam a poluição e as questões climáticas e destroem ecossistemas.
Soluções possíveis
O artigo Car Harm conclui listando uma série de intervenções no problema do protagonismo dos automóveis que têm se mostrado positivas diante dos resultados de outras pesquisas. A aplicação de taxas de congestionamento tem se mostrado efetiva na redução da poluição e na viabilização de mais espaço para ônibus e bicicletas. O fechamento de algumas vias para carros e a redução do limite de velocidade em outras estão diminuindo mortes e ferimentos em acidentes. A revisão de leis que obrigam vagas de estacionamento e a conversão de antigos espaços de estacionamento em outros usos como moradias ou lojas estão aumentando a acessibilidade habitacional.
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Esses são apenas alguns exemplos que devem nortear decisões diante dos muitos dados que comprovam os perigos de ter o automóvel como foco do planejamento urbano. Nesse sentido, é necessária uma quebra de paradigmas e uma mudança estrutural na gestão urbana, que atualmente já avança em diversos países, mas segue atrasada em outros. Uma coisa é certa: no esforço para tornar as cidades melhores, é impossível deixar de lado o combate ao protagonismo do automóvel e seus inúmeros danos.