Embora o título encerre uma contradição, ou mesmo um absurdo, insistirei em usá-lo. Cabe, no entanto, uma justificativa que pretendo expor nestas linhas.
Quem como eu formou-se nos anos de 1950 e participou do mercado de trabalho, realizando projetos arquitetônicos destinados às construções comerciais e/ou residenciais, viu-se diante do Código de Obras e Edificações, conhecido como o Decreto 6000 de 1937. Um documento que buscou costurar e normatizar os elementos do espaço arquitetônico e urbanístico de forma clara e com os princípios higienistas herdados da nossa engenharia do século XIX.
Assim, as áreas de iluminação e de ventilação tentavam garantir a claridade e o banho de sol diário, considerado até medicinal, com parâmetros de rigor razoável, ainda que atentos aos reclamos da construção civil empolgada pelas possibilidades das estruturas verticais em concreto armado. Foi período fecundo e de forte interpenetração com o movimento modernista, preconizando generosos gabaritos dos edifícios, humilhando os pequenos prédios de apartamentos ou escritórios com 4 pavimentos e isentos do uso dos elevadores (quem cuidava de usuários com mobilidade reduzida?) – uma significativa economia e “barateamento” das construções. O “Art Deco” marcou presença e as linhas modernas, condenando as rebuscadas molduras ecléticas, impôs-se como avanço para um novo mundo, melhor, “mais barato” e ao alcance da população. A história não ficou, no final, tão boa, mas deu para marcar presença em muitos bairros do Rio e até mesmo em seu centro histórico, que tentava esquecer Pereira Passos.
Seria ocioso e fora de propósito historiar demais, pois meu objetivo é enfocar as boas intenções de um Código que se mostrou obsoleto 20 anos depois, com a chegada dos veículos particulares. Um novo paraíso ou um novo caos? Milhares de veículos invadindo calçadas, praças e ruas onde desprezados bondes ainda tentavam fazer presença.
O ano de 1970 trouxe aos cariocas um novo código (Decreto E nº 3800 de 20/04/1970) que tentava abrigar os carros em garagens, improvisadas ou não. A princípio com certa tolerância, estabelecendo a obrigatoriedade de prever-se nas edificações, um relativo número de vagas para os automóveis, com proporcionalidade segundo o nível e natureza das edificações. Não esperando que, em pouco menos de 10 anos, seria comum uma família de classe média ter dois ou três veículos para seu uso. Para atender a demanda consumista o código acrescentou o famigerado embasamento com vários pavimentos para garagem, playground e outros serviços do dito morar moderno. O absurdo é esse embasamento não ser incluído no gabarito previsto para o logradouro, assim, o prédio com gabarito de oito andares passa a ter onze e dentro da Lei. A unidade habitacional tem suas áreas restringidas caindo a qualidade do espaço.
Nesta altura, ruas e calçadas (nos sagrados acessos às garagens) tornaram-se mais propícias aos carros do que aos pedestres, fossem crianças, novos, velhos ou cidadãos com mobilidade reduzida. Alargaram-se as pistas e estreitaram-se as calçadas. Danem-se os pedestres!
O que mais interessa nestes comentários, porém, é o que se fez nos espaços internos, agora com a intenção de “baratear” o custo da construção e “dar estímulos à construção civil”, a principal fonte econômica no agonizante Distrito Federal.
Foi aprovado o apartamento conjugado, como apropriado a vida familiar moderna, cravando na cidade prédios com cem ou mais unidades, sendo exemplar notório o famoso 200 da Barata Ribeiro, aberração a tempo retirada do Código de Obras. A unidade mínima na cidade do Rio passou a ter quarto, sala, cozinha/área de serviço e banheiro, com 35m2 no mínimo. Um cadeirante terá dificuldades para movimentar-se neste espaço.
Pretextando responder ao incontrolável aumento populacional e às expectativas da indústria da construção civil, o Código de Obras sofreu novas alterações. Cômodos destinados às habitações tiveram suas dimensões aviltadas (não vou falar no quase extinto “quarto de empregada”, pois as próprias “domésticas full time” estão quase extintas…). Cômodos principais, em nome da economia e assumindo uma falsa ergonomia, tiveram suas dimensões reduzidas. A indústria do mobiliário alcançou grande prestígio, com novo desenho assumindo a “enxutez” para os novos tempos.
Então, os jovens arquitetos encontram um novo Código de Obras, mais permissivo (11/12/2018) e…simplificado, em nome da “economia e racionalidade do espaço”. Assim, projetarão, atendendo à LEI e por ela amparados!
Tudo estaria bem se nossa pirâmide etária não se alterasse. Aquela forma exibida nos compêndios, até então com um vértice delgado, quase desprezível e uma base ampla, derramada, nos mostrava um país de jovens, melhorando o padrão de saúde e …. Alterou-se, porém, para mostrar um país de muitos, muitos velhos.
Ora, desde quando preocupar-se com velhos? Que fiquem em casa quietinhos nos seus pequenos dormitórios. Apressada visão de classe média para classe média e o terceiro escalão… bem sempre foi o terceiro escalão. E tudo estaria bem se o fato de estarmos enfrentando uma natural alteração demográfica séria não fosse afetado pela (afinal, afinal!) consciência de inclusão. Mais gente? Mais velhos? E aqueles que ainda jovens apresentam quadros de deficiências que não lhes reduz a importância nem a cidadania? A sociedade os despensa? Serão um peso ou uma fonte produtiva olvidada?
Que dizer de edificações com 5 (cinco!) pavimentos desobrigados de elevadores? É pra valer?
Não pretendo dramatizar o que pode ser uma tragédia. Dormitórios em que mal cabem uma cama de casal e um armário para roupas; portas com a largura mínima de 60 centímetros para banheiros, por exemplo, circulações com 80 centímetros de largura jamais permitirão que um cadeirante ou um muletante – pragmaticamente, importantes seres humanos para a sociedade – tenham autonomia em seu deslocamento. Nas novas construções, mesmo com ajuda de terceiros, encontrarão barreiras que a arquitetura – a boa arquitetura – comprometeu-se a remover. E que fiquem em casa, quietinhos, pois nas ruas encontrarão não apenas espaços adversos, barreiras, mas também armadilhas quase mortais.
Para isto, é melhor não ter arquitetos. Ou mudar de cidade…
HELIO BRASIL
