A criação e o desenvolvimento dos meios de transporte sempre desempenharam importante papel no processo civilizatório. As caravanas que ao cruzar regiões inóspitas desbravavam territórios, usando carregadores e animais domesticados, hordas movimentando-se no comércio ou nas batalhas; o transporte dos blocos de pedras das pirâmides egípcias, do local de extração ao canteiro da obra (um enigma para os historiadores); a ousada transposição das torrentes em precários barcos; e, saltando no tempo, as grandes navegações, vencendo abismos oceânicos em diminutas embarcações – marco da idade moderna – evidenciam a importância da mobilidade e, em decorrência, a escolha criteriosa dos meios utilizados.
Em nossos dias, a questão ganha noções mais sofisticadas. Além da eficácia, das premissas de conforto e do amparo tecnológico, também contempla a preservação do meio ambiente – dever imposto pela cidadania, articulando mobilidade e preservação.
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No grande quadro das descobertas, o Brasil oferecia extensa costa – cerca de oito mil km – onde se alternavam arrecifes e amenas enseadas, permitindo a chegada dos viajantes e a penetração no continente a partir da rede fluvial. A peculiar condição da baía de Guanabara, no Rio de Janeiro, abrigou as primeiras naves quinhentistas na Guanabara, palco de lutas gravadas na história. A intensificação das conquistas e a pressa em garanti-las, diante do grande território, exigiu dos que aqui se assentaram a multiplicação dos meios de transporte, desde a tração animal até as máquinas, permitindo a posse e o domínio das terras. O avanço dos sistemas nas diferentes modalidades cresceu e aperfeiçoou-se, assegurando o desenvolvimento econômico.
A partir do século XIX, nossas cidades servidas pelas ferrovias viram as ferrovias como portadoras do progresso. Igual fenômeno se deu com as rodovias a partir da expansão automotiva nos meados do século XX. O transporte hidroviário e, em particular, fluvial – já largamente usado entre nós em decorrência daquelas características geográficas – não teve igual desenvolvimento, perdendo-se muitas das redes criadas ao longo dos séculos. Economistas e historiadores buscam a explicação para o processo.
A interiorização continental ocorreu, em parte, subindo os leitos dos rios, assumindo suas fozes e seus afluentes, uma generosa rede de mobilidade. No entanto, esta oferta de uma “estrada pronta” – expressão usada com simplismo – implica em condições especiais das torrentes, leitos nem sempre favoráveis, por vezes assoreados, e vasões comprometidas por outros recursos, como o de abastecimento e a geração de energia em nossos dias.
Da tração animal aos motores, os transportes terrestres multiplicaram-se e mantiveram-se presentes, percorrendo as estradas abertas mesmo onde a geografia era adversa. No século XIX, ainda no Império, construíram-se as ferrovias, depois esquecidas e substituídas pelas rodovias, modal que, de fato, apresenta virtudes quase imbatíveis de rapidez, conservação e, a mais atraente: sistema próximo do “porta a porta” no transporte de mercadorias e passageiros. Enquanto isto, após um breve período em que esteve presente, principalmente com a frota de cabotagem, o transporte marítimo e fluvial brasileiro declinou.
A hidro navegação, de fato, impõe condições especiais no que tange bens perecíveis e para a fixação e conservação de portos e de suas instalações – um dos gargalos da infraestrutura econômica brasileira – por demais dependentes da oferta de modais complementares. Limitação semelhante a que sofre o transporte aéreo, porém atenuada pela extrema rapidez de deslocamento. Contudo, tais óbices não podem justificar o simples abandono do modal ou sua atrofia, ignorando a oferta costeira e a rede fluvial brasileira. É preocupante verificar que o hidroviário em nosso país não ultrapasse 14% do total dos sistemas de transporte e 1,8% entre as matrizes mundiais (dados de 2008), índice baixíssimo face nossas condições geográficas.
Alguns projetos, de forma ainda tímida para a economia brasileira, são levados à frente. A companhia Vale do Rio Doce está utilizando o rio Tocantins (Pará) em operações de transporte de carga naquele estado, transpondo as eclusas da hidrelétrica de Tucuruí e em Barcarena (…) fazendo a articulação com outros modais. Reduz o trajeto em 20%, conduz carga maior e incentiva o desenvolvimento de novos fornecedores e novos postos de trabalho. O uso do minério transportado favorece à obra da indústria da laminação, com ecos no preço final do produto, e abre a alternativa para o seu escoamento na região.
Como se observa, além do uso do modal hidroviário, valoriza-se a possibilidade da articulação entre os diferentes meio de transporte.
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No caso do transporte hidroviário fluminense, temos incorporados à sua história de abandono outros sistemas intermodais que prestaram serviços relevantes e que, sem um amparo político que os integrassem, estiolaram-se. Muitos desapareceram, substituídos por serviços mais eficazes – caso dos acessos à ferrovia que servia Petrópolis a partir do Porto da Estrela, no fundo da baía de Guanabara.
Observando os recortes marítimos e lacunares do estado do Rio, bem como sua rede fluvial, é lícito esperar a ampliação de sistema hidroviário alternativo, suplementar ou intermodal, de forma a obter conforto e eficácia no deslocamento da população.
Criado em 1835, o sistema de barcas a vapor inicia suas travessias na baía de Guanabara, desempenhando o destino de complementariedade entre as cidades à margem daquele espelho d’água. Durante mais de 30 anos, o sistema operou servindo as populações crescentes no estado e no então Distrito Federal. Sucessivos empreendedores assumiram os serviços, e no início do século XX a companhia Cantareira procurou articular o modal com as ferrovias existentes, sistema que servia o Porto então criado e reaparelhado. Passando pelas mãos de concessionárias e com modernizações lentas, as barcas serviam Niterói e as ilhas do Governador e Paquetá, tal como ainda acontece em nossos dias, desempenhando papel importante na economia urbana da região. A decadência do sistema portuário e as crises econômicas desmontaram o sistema, e o trajeto entre Rio e Niterói caiu em crise permanente, passando por diferentes sistemas de exploração.
A ponte que hoje corta a baía reduziu em parte a função hidroviária, mas não a fez desaparecer, permanecendo o serviço como indispensável para a população que reside e trabalha naquela Região Metropolitana, cada vez mais adensada. Os estudiosos observam que, ao longo dos anos, o sistema apresentou lento reaparelhamento, com o surgimento de embarcações mais velozes – catamarãs e hidrobarcos – apenas nas últimas décadas do século XX. Promessas políticas acumulam-se, mas com resultados ainda insatisfatórios.
A baía de Guanabara, em que pesem os problemas de assoreamento e poluição ainda não resolvidos, oferece a oportunidade de uma ligação entre os municípios que lhe ficam às margens: Caxias, Magé, São Gonçalo, uma extensão natural (ou articulada) com as atuais linhas que servem Niterói e Governador. O sistema poderia ser expandido para outras conexões, ainda dentro da baía, contemplando a praia de Botafogo e Copacabana (posto 6).
Mais ousadamente, vez que obrigaria a optar por outros modelos de embarcação que enfrentem o mar aberto sem riscos e desconforto para os passageiros, deveria ser tentada a ligação do interior da Guanabara com a costa de São Conrado e Barra, sem dúvida um grande salto na mobilidade para a Região Metropolitana.
As opções interligando o tão procurado litoral norte e seus locais de produção, como a bacia de Campos ou aqueles aprazíveis ao turismo, de Cabo Frio à Rio das Ostras, e destes para as históricas Angra dos Reis e Paraty, poderiam não apenas ampliar a buscada mobilidade como incrementar os projetos turísticos.
Resta inquirir porque a FETRANSPORTE não levou a cabo estes projetos já cogitados em planos adormecidos nas gavetas.
O quase concluído Arco Metropolitano provocará conexões intermunicipais e transformações demográficas no estado. No município do Rio de janeiro, as novas vias denominadas Trans e a ampliação do Metropolitano apontarão para a integração intermodal dos sistemas a serviço da população carioca e fluminense, tendo em vista a região Metropolitana. Inevitavelmente, os municípios à margem da Guanabara poderão encontrar, através do sistema aquaviário, opções importantes, ampliando as linhas existentes.
Nos anos de 1950, o criativo arquiteto carioca Sérgio Bernardes propôs um sistema de comportas e diques navegáveis fazendo a ligação hidroviária entre as baías de Guanabara e Sepetiba e integrado à rede fluvial. Em que pesem as dificuldades para a realização das ousadas obras e o custo para os usuários na manutenção do complexo sistema, a proposta poderia ser reexaminada como solução alternativa ou complementar às soluções ferroviárias (estranhamente atrofiadas, senão abandonadas) e rodoviárias.
No caso particular do município do Rio de Janeiro, as lagoas na região da Barra – polo de expansão da cidade com planos de se integrar ao sistema do Metropolitano – deverão ser contempladas com sistemas de lanchas movidas à bateria solar, um ponto positivo não apenas para a mobilidade da crescente população local como para a questão ambiental. Pode-se pensar que a ampliação destas propostas atinja outras regiões do estado fluminense, entrecortadas de grandes espelhos d’água e com a já lembrada extensa costa marítima.
O histórico do sistema é tratado de forma mais minuciosa no trabalho de Alan Pacífico, “A história do transporte aquaviário na baía de Guanabara“ (2010), e do qual retiramos alguns dados.
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Ao examinarem os modais hidroviários, urbanistas e arquitetoscolocarão em suas mesas de trabalho alternativas de grande alcance social e econômico para o desenvolvimento do promissor território do estado do Rio de Janeiro. Resta apurar se nas opções para formular políticas de investimento na escolha de um sistema, outros interesses, mascarados por tecnicismos, falam mais alto do que a escolha racional.