A entrevista desse mês é com o arquiteto e urbanista Cláudio Rezende Ribeiro. Professor do Departamento de Urbanismo e Meio Ambiente da FAU-UFRJ e Presidente da Seção Sindical dos Docentes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ADUFRJ-SSind).
1-Nestes últimos 20 anos, quais as transformações sofridas pela categoria?
Vou focar minhas respostas nas transformações do mundo do trabalho, visto que este é um informativo de um Conselho Profissional. Se levarmos em conta que os últimos vinte anos representaram o avanço do projeto liberal de globalização que segue a linha do “Fim da História” de Fukuyama (Francis Fukuyama, pensador conservador estadunidense) e do Consenso de Washington, as transformações sofridas pela categoria dos arquitetos e urbanistas acompanharam a das outras categorias: precarização das condições de trabalho, perda de direitos, etc. Evito avaliar as mudanças sofridas pelos arquitetos e urbanistas separadamente das outras categorias de trabalho para não reforçar a ideia de distinção deste profissional.
A noção de diferenciação da categoria me parece, em muitos aspectos, algo falso, uma espécie de discurso legitimador que todas as profissões criam para produzir uma excepcionalidade que deveria ser valorizada pelo mercado, mas que enfraquece a noção de “campo profissional” que possibilita articular diferentes formas de trabalho. Neste contexto, isto é, levando-se em consideração que nossa classe não é “mais diferente que as outras” não vejo ganhos substanciais para os arquitetos e urbanistas nos últimos 20 anos.
2-Neste mesmo período, em função dos avanços tecnológicos em particular a informática, quais as mudanças mais expressivas ocorridas no exercício da profissão?
Os “avanços da informática” abrangem diferentes esferas das relações sociais. Por um lado eles têm fomentado um debate a respeito de novas formas de representação do espaço, seja no que diz respeito às maneiras de apresentar a mercadoria produzida por determinados tipos de arquitetura, estabelecendo um diálogo cada vez mais distante e “fetichizado” com o consumidor/morador; seja oferecendo novas e criativas ferramentas que retomam possibilidades outras de comunicação sobre o espaço, tais como filmes, maquetes físicas orientadas por computadores, etc. Ao mesmo tempo, retomando o raciocínio da pergunta anterior, a tecnologia tem possibilitado um acúmulo cada vez maior de produtividade e exploração da mão de obra.
Enquanto as máquinas aceleram sua capacidade de processamento, os trabalhadores são forçados (e estimulados desde a faculdade) a acompanhar um aumento quantitativo de trabalho que não significa necessariamente melhoria de sua qualidade. Assim, por exemplo, um estagiário é cada vez mais solicitado a realizar, em um curto tempo: desenhos técnicos, maquetes eletrônicas, animações, fotomontagens (e recebendo a mesma quantia irrisória por mês)… Uma miríade de coisas que não necessariamente representam uma arquitetura e urbanismos melhores, mas certamente significam precarização das condições de trabalho.
3- Como resultado das perguntas anteriores, como você avalia os novos rumos da profissão em relação ao exercício e também ao produto arquitetônico?
Para fazer esta avaliação, seria muito importante refletir sobre o que estamos aqui chamando de produto arquitetônico. Se este produto for a reprodução do que vem sendo feito de maneira hegemônica, isto é, uma produção que tende a, cada vez mais, aumentar o preço do solo nas cidades, os novos rumos da profissão não me parecem muito empolgantes. Alguns arquitetos e urbanistas sendo contratados de maneira precária para reproduzir espacialidades de baixa qualidade de uso, mas com alto apelo comercial de um lado; e um número menor de outros profissionais produzindo obras de qualidade para as elites ganhando destaque como sendo os “super arquitetos” de revista. Acho que o Conselho, se desejar debater os rumos da profissão no sentido de transformá-la, enfim, em algo que tenha outro tipo de serventia pública, deveria promover um debate sobre os rumos do campo da arquitetura e do urbanismo, levando em consideração, inclusive, outras formas fundamentais de atuação deste profissional, como é o caso daqueles que trabalham no setor público. A arquitetura e o urbanismo têm que ser encarados, pela categoria, como uma função social pública necessária para produzir justiça social. Senão seguirá os rumos tradicionais do velho e conservador mercado que já conhecemos.
4-Na sua opinião, como deve ser a posição de nossas entidades em relação a presença de escritórios e empresas de projetos estrangeiras no mercado de trabalho brasileiro?
Não acho que o debate em torno da nacionalidade seja profícuo. Mais importante, na minha opinião, é saber a diferença entre escritórios e empresas no mercado (estrangeiro ou nacional). A consolidação de uma boa parte dos arquitetos e urbanistas no Brasil não se dá pela forma empresa, ou pelo menos grande empresa, mas pela forma pequeno/médio escritório (além dos empregos públicos).
O debate sobre o trabalho em escala local e em escala industrial deve ser seriamente esclarecido. Parece-me que esta questão, se bem colocada, isto é, o empenho em auxiliar a formação de pequenos escritórios em conjunto com o empenho em disseminar a arquitetura e urbanismos públicos são mais urgentes e deverão solucionar questões prioritárias e poderiam diminuir os problemas da pauta nacionalista.
5- Com a saída dos arquitetos e urbanistas do sistema CREA/CONFEA e a criação do CAU – lei Nº 12.378 – como deverá se dar a divisão de atuação das demais entidades dos arquitetos?
Acredito que as entidades, sobretudo IAB e SARJ (no caso do Rio de Janeiro) deveriam promover um debate, em conjunto com o CAU, no sentido de organização da categoria. Mais do que nunca é preciso construir uma identidade de ação, mas não creio que isso deva ser relacionado à saída do sistema CREA/CONFEA. Obviamente que esta saída promove novos desafios, mas o campo da arquitetura e urbanismo é, cada vez mais, um campo nevrálgico para as transformações sociais, somos cada vez mais centrais e esta condição exige uma reorganização do discurso da classe.
Entendo, inclusive, que a categoria deveria se organizar não apenas como profissionais “Arquitetos e Urbanistas”, mas de maneira ampla, entre trabalhadores que interferem no espaço compondo um campo profissional, incluindo, por exemplo: paisagistas, tecnólogos de diversos tipos, restauradores, técnicos em edificações, geógrafos, museólogos, engenheiros civis, etc. As entidades deveriam procurar articulações com diferentes áreas ao invés de fechar cada vez mais um “círculo privilegiado”.
6- Como deverá ser equacionado o sombreamento da atuação profissional entre o arquiteto e o engenheiro civil, já que agora estão filiados em Conselhos próprios?
A resposta anterior toca nesta questão de maneira breve. Acredito que o sombreamento profissional é algo intrínseco ao objeto de intervenção, que é o espaço e que não possui, por sua natureza, um profissional exclusivo para trabalhar com ele. O caso do urbanismo, por exemplo, demonstra isso bem: é praticamente inviável pensar em urbanismo seriamente sem o auxílio de diversos profissionais, dentre eles, inclusive, o engenheiro civil. Negar esta contradição do campo é tentar resolver uma questão insolúvel.
A normatização sempre vai conter este sombreamento, portanto, cabe à categoria saber se organizar, primeiro, para compreender porque, em diversos momentos, o arquiteto e urbanista não é solicitado para determinados trabalhos. Isto deve ser debatido, inclusive, com os profissionais de engenharia. Mas, para isso, a organização da categoria tem que levar em consideração a multiplicidade de profissionais que atuam no espaço e as relações de poder entre elas. Não adianta acreditar que a criação de um Conselho único será capaz de solucionar uma condição histórica que ocorre para além da mera normatização.
7-Para efetiva aplicação das atribuições profissionais definidas pela Lei Nº 12.378, quais deverão ser as modificações no ensino de Arquitetura de modo adequá-lo ao que estabelece a lei?
As modificações do ensino de Arquitetura (e Urbanismo, lembrando que todas as nossas faculdades formam o profissional com esta habilitação “dupla”, não havendo, portanto, ensino isolado de Arquitetura no Brasil como a pergunta leva a crer) devem ser pautadas pela universidade que tem sua autonomia garantida pela constituição. Autonomia, no entanto, não pode significar isolamento. É fundamental que sejam debatidas as condições de consolidação desta lei e suas consequências em âmbito universitário para que os profissionais em formação possam, inclusive, atuar no sentido de criticar, aperfeiçoar, enfim, compreendendo como esta lei interfere em sua vida. A pergunta, inclusive, neste caso, pode ser refeita, provocativamente como: quais as modificações podemos fazer na Lei 12.378 a partir do que é debatido na Universidade? Debates assim ajudarão o próprio campo a se enxergar para além da parte do inciso II do Artigo 2º (que tem XII incisos tratando das atribuições profissionais) que parece ser a única forma reconhecida de trabalho de arquitetura e urbanismo.
8-Qual a sua opinião sobre a Política Habitacional e Urbana(s) desenvolvida(s) hoje no país?
A política Habitacional e Urbana é um desastre social. Os arquitetos e urbanistas devem, cada vez mais, compreender sua função pública para que haja um campo de disputa mais consolidado em torno da retomada de uma política urbana que promova justiça social. Em breves palavras, a política urbana contemporânea serviu, sobretudo, para o aumento do preço do solo (este é o grande legado da Copa para o Brasil) que acarreta, necessariamente, aumento da desigualdade social e da concentração de renda em forma de concentração de terra. Por isso o debate sobre o trabalho público e de pequena escala dos profissionais de arquitetura e urbanismo se faz necessário. Quando nos restringimos à produção industrial de massa da forma contemporânea, a política urbana é dominada pelo grande capital de grandes incorporadoras que, para seguirem grandes, produzem o desastre anunciado no início da resposta.
9-Como você classifica a qualidade da produção arquitetônica e urbanística em nossas cidades e até onde vai a responsabilidade dos arquitetos nestes projetos e obras?
A produção arquitetônica e urbanística no Brasil não é feita apenas por arquitetos e urbanistas. A responsabilidade destes profissionais, no entanto, é gigantesca. Sabe-se que a produção informal de cidades, em muitos aspectos, produz precariedade que interfere diretamente na qualidade de vida do habitante: desde questões de saúde, mobilidade, conforto ambiental, qualidade de espaços públicos etc. No entanto, o comportamento do profissional costuma ser ignorar sua responsabilidade onde ele não foi chamado a atuar, alegando que determinadas questões são de “cunho político e social”: como se fosse ele próprio alijado da política e da sociedade. Enquanto o arquiteto e urbanista continuar assumindo o discurso de neutralidade ao invés de enfrentar de forma séria e com comprometimento os problemas urbanos que lhe cabem, ele será profundamente responsável, por omissão, por diversos problemas que ocorrem em nossas cidades.
10-Quais deveriam ser as medidas concretas e objetivas de alteração da Lei Nº 8666 para que seja garantido o Concurso Público de Projetos como forma usual de licitação e contratação?
Além da Lei 8.666, há o Regime Diferencial de Contratação que traz mais questões problemáticas sobre este tema. De toda maneira, a forma “Concurso Público” deve ser debatida aprofundadamente pela categoria. Será o concurso de ideias e projetos de arquitetura e urbanismo a melhor solução para quaisquer projetos? Não seria a hora de debatermos a necessidade de reforçar a contratação de arquitetos e urbanistas para as equipes permanentes de prefeituras, por exemplo, de modo a fortalecer sua atuação em diversos níveis, incluindo dos projetos para os espaços públicos? Os Concursos são uma maneira historicamente importante de produção, renovação e disseminação de ideias e práticas de nossa profissão, creio que muitos projetos poderiam ser resolvidos pelos arquitetos próprios de cada instituição, reservando os concursos para ocasiões de excepcionalidade.
Este debate deve ser realizado de maneira intensa pelas entidades de classe em conjunto com os servidores que atuam diretamente com as licitações: mais uma vez, não deve ser tratado como um debate exclusivo dos arquitetos e urbanistas.