Referência nos estudos sobre azulejaria, a arquiteta e urbanista Dora Alcântara escolheu uma profissão dominada por homens e viu esse quadro se reverter ao longo das décadas. Aos 83 anos, assistiu ao aumento da presença das mulheres na profissão e espera que essa transformação contribua para a boa qualidade da arquitetura brasileira. Formada pela Faculdade Nacional de Arquitetura, atual FAU/UFRJ, dedicou a carreira também ao ensino e à preservação do patrimônio. Na entrevista ao CAU/RJ, Dora fala sobre a carreira e faz ainda uma breve análise do cenário político no Brasil.
De acordo com o Censo realizado pelo CAU/BR, 60% dos arquitetos e urbanistas em atividade no Brasil são mulheres. Como a senhora vê o aumento de mulheres nas turmas de Arquitetura?
Na década de 1960, quando comecei como assistente e me tornei professora, o percentual de mulheres nas turmas de Arquitetura já começava a aumentar bastante, mas o número de homens ainda era maior. Realmente, depois houve uma inversão.
Isso não acontece só na Arquitetura. Se olharmos para as turmas de Administração, Ciência da Computação, Marketing, assim como Medicina ou Engenharia, o número de mulheres também aumentou muito. É o processo de emancipação feminina, com as mulheres ocupando espaço na sociedade. Hoje temos uma presidente mulher. E não é só no Brasil, na Argentina ou no Chile, mas também uma primeira ministra na Alemanha. Há uma ascensão da mulher na vida profissional e nas posições de comando.
Por que, mesmo com esse aumento na população feminina entre os arquitetos e urbanistas, tão poucas mulheres são reconhecidas como destaques na profissão?
Esse crescimento da participação feminina ainda é uma coisa recente, de duas gerações. Talvez daí elas não terem se notabilizado tanto. Na verdade, também não apontamos tantos nomes célebres entre os homens. A fase em que tivemos número maior de arquitetos reconhecidos foram as décadas de 30 e 40, época em que nossa Arquitetura teve maior projeção internacional. Nesse tempo a profissão era quase que exclusivamente masculina.
Em um tempo em que a profissão era predominant masculina, como foi a escolha por esse curso?
Fiquei muito em dúvida. Gostava de História, Filosofia, fiquei muito inclinada ainda a fazer Engenharia, talvez porque meu pai fosse engenheiro. Como a Arquitetura exigia muito do desenho e o meu não era essas maravilhas, não tinha certeza de que seria a escolha correta. Mas meu pai me convenceu de que talvez eu me encontrasse mais na Arquitetura, que é muito diversificada em áreas de estudo.
Sempre achei muito especial você idealizar uma forma, calcular essa forma e construí-la, torná-la um espaço vivo, um espaço real para as pessoas viverem. É uma participação no habitat humano. Isso me parecia formidável.
Como a participação das mulheres pode contribuir para a produção arquitetônica brasileira?
Acho muito bom homens e mulheres trabalharem juntos, pois são sensibilidades complementares. Isso gera um resultado mais completo. À medida que a mulher entra no mercado, tenho esperança de que a convergência de sensibilidades nos leve a apresentar outra vez algo de novo, de especial, na Arquitetura.
Como surgiu o encanto pelos azulejos?
Fui para São Luís por causa do trabalho de meu marido. Levei então a recomendação de Dr. Rodrigo [Melo Franco, fundador do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – SPHAN, atual IPHAN], que me pediu a indicação de edificações a serem tombadas, tornando a preservação, naquela cidade, condizente com o valor que tem. O que me encantou muito na pesquisa foi a azulejaria de fachada. Quando voltei ao Maranhão, após o nascimento da minha filha, fiz o primeiro levantamento de azulejos.
Como não tinha máquina fotográfica, fui desenhando, fazendo o croqui de cada azulejo. Conheci então o Cônego Osmar Palhano de Jesus, que tinha uma câmera e se propôs a me ajudar. Fotografamos tudo o que encontramos.
Quais são os grandes desafios em relação a preservação do patrimônio?
O primeiro é a consciência de que o patrimônio arquitetônico tem um valor insubstituível e faz parte do patrimônio cultural do país. Além disso, é preciso valorizar materialmente o patrimônio. Em certos lugares da Europa, o que é patrimônio tem maior valor econômico. Aqui no Brasil isso acontece em alguns casos como, por exemplo, em Paraty: houve época em que uma casa lá valia mais do que um apartamento em Copacabana; mas isso é raro. Em geral, o que interessa é o terreno; a casa o proprietário derruba e multiplica o terreno em tantos andares quanto o gabarito local permitir.
Essa é outra dificuldade: a competição com a especulação imobiliária, com essa mentalidade da multiplicação do espaço no crescimento em altura. Precisamos vencer a ideia de que progresso é, obrigatoriamente, crescimento em altura, enquanto em muitos casos a qualidade de vida fica prejudicada.
Ainda há uma visão elitizada da Arquitetura pela sociedade?
Na época em que eu estava na universidade, batíamos muito nesse ponto: a Arquitetura precisava deixar de ser vista como objeto de luxo. A visão sobre a profissão era focada, sobretudo, em grandes monumentos. Mas um país não vive fazendo monumentos a toda hora. Se fôssemos nos formar para isso, bastava um número muito pequeno de arquitetos.
Entre o trabalho na área de patrimônio, as pesquisas sobre azulejos e a vida como professora, faltou algo na sua carreira?
Tenho uma frustração desde a época de estudante que é a de não ter tido a oportunidade de fazer mais pela área social. Sempre estivemos muito focados, em nossa formação, no que era destinado às classes média e alta. No entanto, há uma enorme população sem moradia que tem de ser atendida. Essa representa uma grande parte do povo brasileiro e não podemos descuidar. Os governos que se proponham a enfrentar questões relativas à moradia digna fatalmente terão dificuldades inerentes a problemas desta magnitude. Graças a Deus, nós arquitetos já nos voltamos para questões como a moradia de interesse social e assentamentos humanos sustentáveis.
Como a senhora vê o momento político no Brasil?
Vejo com muito desgosto a mídia privilegiar o que é negativo. Ela deve, evidentemente, fazer a crítica, para que a população esteja a par dos problemas, mas mostrar também o que se cria de positivo. A mentalidade corrupta não está só no Brasil mas, infelizmente, no mundo inteiro. Vamos parar com essa depreciação de nosso País!
Outro dia alguém me disse que esteve lendo sobre a “psicopatia política” e que, portadora dessa doença, “a turma de esquerda está preparando uma América do Sul comunista”. Assim são vistas as tentativas de estabelecer maior justiça social em nosso continente. Gente, estar interessado no social é, obrigatoriamente “ser de esquerda”? A reforma agrária, por exemplo, ao tornar proprietários os que se beneficiam da terra e fazer de espaços ociosos áreas produtivas, é uma medida capitalista!
Precisamos, urgentemente, resolver o problema da educação. Não só a educação do “A, B, C, D”, mas uma educação para a cidadania. A politização saudável, inteligente, é uma das coisas que mais falta entre nós. É bem verdade que o progresso histórico é muito lento, não é em uma geração ou duas que mudanças profundas se operam. Não será para a minha, com certeza. Sejamos realistas, mas otimistas.