A trajetória do arquiteto e urbanista Dietmar Starke é repleta de feitos notáveis: ele estudava um plano para a integração da Alemanha em um mestrado na Universidade de Artes de Berlim, quando o Muro que dividia o país veio abaixo; projetou o Centro de Mulheres do Mundo Islâmico no Egito e foi ameaçado de morte; trouxe para o Jacarezinho, comunidade na Zona Norte da capital, o primeiro projeto da Bauhaus construído depois da Segunda Guerra Mundial. O último deles foi vencer um dos prêmios mais importantes do mundo, o Architizer A+ Awards, com as Naves do Conhecimento, projeto que realizou como servidor da RioUrbe, empresa municipal de urbanização da Prefeitura do Rio.
Aos 56 anos, o catarinense com jeito de alemão – em parte herança dos 13 anos vividos no país – não gosta de ser convencional: “o prefeito [Eduardo Paes] brinca que sou o arquiteto mais maluco do Brasil. Considero uma homenagem. E meu cabelo ajuda um pouco”, brinca. Em entrevista ao CAU/RJ, ele afirma que a arquitetura contemporânea tem que emocionar e contribuir para uma cidade mais moderna, para um Rio de Janeiro 2.0.
Veja galeria de fotos da entrevista na Nave de Madureira
Em que o senhor se inspirou para criar as Naves do Conhecimento?
No começo dos anos 90, eu e minha esposa [a artista plástica Júlia Diez] participamos de uma exposição que foi o marco inicial da corrida da informática na Alemanha. Fizemos uma proposta dentro de um processo de democratização do acesso à internet e trouxemos a ideia, com a Bauhaus, para o Jacarezinho, com o projeto Célula Urbana. Quando o prefeito Eduardo Paes pediu para que eu fizesse lan houses, pensei em um lugar onde crianças e jovens possam fazer cursos, ter uma biblioteca digital, ter contato com tecnologias complexas. Demorei uns 20 anos desenvolvendo o conceito.
Primeiro foi construída a Praça do Conhecimento, em Padre Miguel [desenvolvido em parceria com o arquiteto Alexandre Pessoa]. Depois, precisávamos fazer praças menores. Então sugeri naves que “pousassem” pela cidade. Hoje já são oito naves. A Nave vem de uma ideia de futuro, de uma perspectiva de vida que pode ser alcançada, como um portal. Meu desenho é sempre muito futurista por natureza. Sou influenciado por minha experiência como artista plástico, pela abstração.
Como surgiu a ideia de se inscrever no prêmio?
Alguns americanos que vieram visitar a Nave e gostaram do projeto falaram sobre o Architizer A+ Awards. Quase desisti de inscrever porque a taxa era de US$ 250. Vi os nomes que
participavam do júri, os concorrentes, e pensei que não teria chances, mas minha esposa e o [João] Calafate insistiram. Um mês depois recebi um e-mail dizendo que estava entre os 500 selecionados, de 3 mil projetos. O júri escolheu os cinco melhores, que foram para votação popular. No final, foram 79 mil votos no mundo inteiro. O prêmio é uma afirmação de que estamos no caminho certo. As pessoas começam a ter um outro olhar, inclusive sobre o funcionalismo público.
Quais são as principais características e inovações das Naves em termos de projeto e de materiais?
Na parte de baixo das Naves há dispositivos táteis, a lan house e a biblioteca digital. Na parte de cima, acontecem as aulas. A sala da Nave é suspensa por cabos de aço presos ao teto e seu formato cria uma atmosfera diferente lá dentro. As pessoas não querem as tradicionais salas quadradas. As angulações das rampas proporcionam uma ambientação diferente. O piso é de cimento comum para dar uma ideia de trabalho.
Todas as sextas e sábados são projetados filmes em uma película especial pelo lado de dentro [do “olho” da Nave], que se refletem com nitidez no lado externo.
Todas as Naves são projetadas voltadas para o sul. A parte norte é feita com a inclinação ideal do Rio de Janeiro (cerca de 37º) para a instalação de células fotovoltaicas. A Nave de Madureira é única voltada para oeste, onde pega mais calor. Quanto aos materiais, tivemos que nos adaptar. Era para ter duas paredes de concreto, mas fizemos uma estrutura metálica simples com revestimento de cimentícia. O acabamento é um paradigma que temos que superar, assim como a manutenção. Cada peça da Nave está registrada em catálogo, com a validade, a especificação. É uma forma de garantir que a manutenção seja bem-feita.
Como a arquitetura e o urbanismo podem contribuir para a transformação da cidade?
O modernismo no Brasil foi um momento muito importante, de euforia. Nós temos que criar um segundo momento com esse entusiasmo. Eu respeito o modernismo, mas temos que ser contemporâneos e há muita resistência. A nossa arquitetura é conservadora. A arquitetura hoje não é somente funcionalidade, composição, ela tem que emocionar, provocar uma ligação das pessoas. As instituições, o CAU, o IAB, os políticos, os técnicos já não podem ter preconceitos. O problema não é o edifício alto e de vidro, mas sim aquele que não funciona. Nós somos uma metrópole ou um balneário? O arquiteto tem autoridade para dizer ‘vou fazer um edifício alto com compromisso climático, ambiental, social, estético e de design’. Esse é o Rio de Janeiro 2.0.
O que está faltando para alcançarmos esse Rio de Janeiro 2.0?
O Rio precisa dar um salto. Nós não temos que pensar exatamente como pensou Nova York ou Berlim. Podemos pular uma fase, nos modernizar e criar uma cidade inteligente. Nós desperdiçamos nossos potenciais naturais. Poderíamos fazer high lines verdes em nossas encostas do começo de Santa Teresa até Sepetiba. A floresta precisa avançar para a cidade. Temos que criar esses oxigenadores. Precisamos de uma arquitetura voltada para a questão climática.O adensamento também é importante. A zona norte e a zona oeste têm que criar polos de desenvolvimento para diminuir esse fluxo ioiô para o Centro. Temos que criar a cidade democratizada, com equipamentos, serviços, entretenimento, com atratividade, paisagem urbana adequada. A redução da violência passa pela transformação das cidades em espaços mais humanos. Temos uma visão de que tudo demora muito tempo para acontecer, mas mudanças acontecem, muros caem de uma hora para a outra.
O senhor vê a arquitetura e o urbanismo como uma ferramenta de inclusão social?
Os arquitetos acham que não têm força, mas têm. Temos que preparar uma geração que denuncie aberrações. Acho um absurdo que um arquiteto projete uma habitação social em que ele mesmo não moraria. Habitação é um caso sério. O que me chama atenção nas intervenções nas favelas são arquitetos e escritórios renomados fazendo uma arquitetura absolutamente perversa. 35 m² com 3 quartos? Você sempre tem a alternativa de dizer não, o que significa não ganhar o dinheiro. Mas costumam dizer “se eu não fizer, outro faz”, quando o certo seria dizer não faço e se outro fizer, denunciar. A própria classe de arquitetos permite que o outro faça, por isso, temos arquitetura e habitações ruins. Os arquitetos não se juntam para fazer uma arquitetura melhor, uma legislação melhor. As empreiteiras têm uma resistência clara em construir edificações públicas de qualidade porque existe um estereótipo de que, na favela, no subúrbio não precisa ter a mesma qualidade da zona Sul, apesar de receberem o mesmo valor pelo trabalho.
Como o Conselho e as entidades de arquitetura podem colaborar para essa mudança?
O Conselho tem que dar um estímulo positivo, mostrar que a arquitetura da cidade caminha para ter um upgrade de qualidade importantíssimo, não só no espaço público, mas no privado. Tem que ter uma exigência. Não é possível que você construa um apartamento onde quer que seja com cinco, seis banheiros. Só pessoas que não têm comprometimento com a vida e o planeta podem adquirir casas desse tipo, com quartos de empregada, que refletem essa cultura da Casa Grande e Senzala.
O Conselho de Arquitetura e os profissionais têm que se articular para essa missão. Chega desses grandes arquitetos que acham que estão construindo a cidade inteira, mas estão produzindo a desigualdade social. É possível construir uma cidade moderna, mas é preciso eliminar esses ranços, essas formas de atuar. Temos muita responsabilidade com a cidade, com a sociedade. É preciso um mínimo de consciência social, ambiental e de design.