No dia 15 de dezembro, dia do Arquiteto e Urbanista, ocorreu a entrega do I Prêmio Grandjean de Montigny. O vencedor, selecionado pela Comissão Julgadora formada pelos arquitetos e urbanistas Ruy Ohtake, Maria Elisa Baptista e Luiz Fernando Janot, foi revelado em cerimônia na UFRJ. Como parte das comemorações, o site CAU/RJ conversou com a arquiteta e urbanista Margareth da Silva Pereira, uma sumidade quando o assunto é Grandjean de Montigny. Graduada pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da UFRJ e pela Université de Paris Vincennes, Margareth é doutora em história pela Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais da França e tem ainda especialização em História da Arte pela PUC-Rio. Lecionando há 30 anos na FAU-UFRJ no PROURB, Margareth conta sobre o arquiteto e urbanista que é a inspiração para o prêmio do CAU:
CAU/RJ – De que forma descobriu e se interessou por Grandjean de Montigny?
Margareth – Diante da perda da inteligência, da sensibilidade, que observamos cada vez mais nas cidades, as obras de arquitetura, a biografia de Grandjean de Montigny e, particularmente, a maneira como ele lidou com ambas, sem jamais renunciar à prática do projeto e do ensino, se impuseram a mim como objeto de estudo.
CAU/RJ – Quais são os principais aspectos da obra do Grandjean que considera importante destacar no Brasil e no mundo?
Margareth – O Rio de Janeiro no início do século XIX não era uma cidade qualquer. Os dois edifícios que restaram da sua obra são incomparáveis como exemplos de arquitetura. Não há em todo continente americano, nem nos Estados Unidos, em Washington, nem no México, na Cidade do México – principais nações do continente naquele período – obra de arquitetura construída com tamanha erudição e qualidade espacial como a Casa França-Brasil. Existem edifícios grandes de tamanho, que buscam certo protagonismo, a Casa Branca, por exemplo, mas nenhum alcança a potência formal do interior da Casa França-Brasil.
Arquitetura não é um problema de recursos financeiros ou de dimensão. Mesmo tendo sofrido uma reforma que mutilou, parcialmente, o seu interior; a espacialidade da Casa França-Brasil permanece latente, resistindo, insistindo para que não nos esqueçamos de que podemos pensar sentindo, sentir pensando, e que podemos ser maiores que a mesquinhez do nosso cotidiano.
CAU/RJ – Qual a importância do Grandjean para criação da Escola de Belas Artes no Brasil?
Margareth – Grandjean de Montigny foi o primeiro e único professor de arquitetura da Academia desde 1816, quando foi criada a escola, até 1850, ano em que falece, no Rio de Janeiro.
CAU/RJ – Quando o Grandjean chegou ao Brasil e qual era a missão?
Margareth – Ele chegou ao Rio quando tinha 40 anos e viveu em terras cariocas durante 34 anos. Faleceu aos 74 de um resfriado que contraiu no carnaval de rua, em 1850. Seu primeiro aluno foi um jovem francês, Louis Synphorien Meunié, que voltou como arquiteto para a França em 1822.
A partir de 1826, quando o ensino se tornou mais regular com a inauguração da sede da escola, ele passou a ter vários discípulos, de Manoel de Araujo Porto Alegre a José Maria Jacinto Rebelo, passando por Domingos Monteiro, Candido Guilhobel, Job Justino de Alcantara, Antonio Batista da Rocha, Francisco Bethencourt da Silva, entre outros.
CAU/RJ – Qual era a formação de Grandjean e em quais áreas atuou?
Margareth – Grandjean foi um arquiteto de múltiplas facetas: fez projetos de monumentos, chafarizes, edifícios públicos e privados, abertura de ruas, concepção de praças, centros cívicos entre outros. Embora a profissão de urbanista ainda não existisse, formalmente, e os projetos de conjuntos urbanos nas cidades Europeias fossem muito raros, ele fez pelo menos quatro grandes projetos urbanos de grande escala para o Rio de Janeiro na primeira metade do século. Escreveu também livros sobre temas inovadores em sua época. Seu livro, em colaboração com Auguste Famin, L’Architecture Toscane ou Palais, Maisons, et autres édifices de la Toscane (1806-1815), foi republicado várias vezes ao longo do século XIX e até o início do século XX.
CAU/RJ – Conte mais detalhes da carreira de Grandjean.
Margareth – A sua carreira pode ser dividida em três grandes períodos. A primeira foi na fase de formação na École de Beaux-Arts, no período revolucionário na França (1789-1799) de Paris. Em 1799, ele ganhou o prêmio máximo da academia de arquitetura: o Prix de Rome com o projeto de um Cemitério Público. Esse prêmio que era atribuído praticamente na conclusão do Curso consistia em uma bolsa de estudos de cinco anos em Roma e na Itália para estudar a arquitetura dos antigos. Grandjean, ainda, por conta das instabilidades políticas viajou apenas em fins de 1801, e os anos de formação se estenderam até 1805. Depois retornou para França, após uma longa estadia em Roma e no norte da Itália. Foi lá que estudou de modo inédito a arquitetura na Toscana. Seus estudos, reunidos no livro realizado com Famin contribuiu para o conhecimento da arquitetura nessa região e, mais tarde, para o conceito de renascimento e de estilo neoclássico, palavras que tanto se usa nas escolas de arquitetura e poucos se perguntam como passamos a chamar certas obras com esses nomes.
O segundo período da carreira foi marcado por realizações de projetos para a corte do irmão de Napoleão Bonaparte, Jerônimo Bonaparte, na Alemanha em uma região denominada à época Vestfália, entre 1807-1813. Por indicação de seus mestres Percier e Fontaine, Grandjean recebeu a encomenda de conceber o chamado Palácio dos Estados para abrigar o que deveria ser uma Assembleia Legislativa da Confederação formada pelos príncipes que detinham o poder nessa parte do território alemão e que se submeteram a Napoleão e seu irmão, coroado rei. O esforço de Grandjean nesse projeto inovador, afinal a própria ideia federativa era uma novidade, culminou com a publicação de mais um livro – Plan, Coupe, Élévation et Détails de la Restauration du Palais des États et de Sa Nouvelle Salle.
Por fim, o terceiro período de 1816 a 1850 foi marcado pela sua trajetória e suas obras no Rio de Janeiro, onde atuou como arquiteto e professor da Academia Real de Ciências Artes e Ofício, criada em 1816 por D. João VI e depois de várias reformas, intitulada Academia Imperial Belas Artes, já sob a regência de Pedro I.
CAU/RJ – Qual é a importância para os jovens profissionais conhecerem a obra de Grandjean?
Margareth – A importância de conhecer a obra de Grandjean é central. Para começar, trata-se da pessoa que contribuiu durante mais de 34 anos para garantir uma titulação em arquitetura. Durante mais de três décadas, ele lutou pelo reconhecimento do próprio campo disciplinar e profissional dos arquitetos, o que não é pouco. Manteve aberto o curso de arquitetura durante todo esse tempo formando mais de 50 alunos. No plano social fez com que a arquitetura saísse do campo, apenas, dos reis e príncipes e pouco a pouco construiu uma obra diretamente voltada para a cidade e para o bem estar coletivo projetando praças, mercados, chafarizes para abastecimento, ruas, equipamentos culturais. Só esses aspectos já seriam notáveis, sobretudo quando se pensa nas crises políticas que enfrentou não só na Europa, mas também aqui no Brasil: a Independência, a abdicação de Pedro I, a década perdida da Regência e com todas as dificuldades econômicas que acompanharam esses processos.
As crises da atualidade permitem que, vagamente, possamos imaginar como é difícil acreditar em uma profissão nesses momentos e nos manter na luta por aquilo em que acreditamos, quando tudo parece ser obstáculo ou que não vale a pena. E o percurso de Grandjean e suas obras é um exemplo dessa convicção em ideias e ideais, de crença em um presente, pela perseverança, pela obstinação, mas também de aposta em um amanhã que sobre ruínas se anuncia novo porque acredita na faculdade criativa dos homens de reinventar-se.
CAU/RJ – Qual o maior diferencial de Grandjean?
Margareth – Ele não foi apenas formado em arquitetura, ele foi um arquiteto. O que não é a mesma coisa. E foi justamente um arquiteto que em situações tão adversas soube, sem temor, renovar-se. E é aqui que ele contribui ainda mais para a história da arquitetura no Brasil pois sua obra, para quem procura ver, mostra-o no embate com a atualidade, com a crítica, com uma transgressão que é plenamente construtiva. Isto é atenta ao que o cerca. Ao longo de sua vida, a cada momento ele parece não ter se cansado de pesquisar, de se perguntar, de tentar, dando o melhor de si no estudo de plantas, volumes e materiais, no estudo das relações entre corpos e no estudo das formas. Grandjean e suas arquiteturas hoje de papel nos convidam, intensamente, a frequentar esse espaço onde o próprio tempo ou o lugar se desmancham e nos vemos cercados, em cada detalhe, da força do trabalho e da invenção.