“Penso que não existe necessidade alguma de modificações no ensino de arquitetura e urbanismo de modo a adequá-lo a Lei 12.378, de 31/12/2010. (…) Há, sim, necessidade de ajustes pontuais nas Diretrizes Curriculares Nacionais em função dos novos desafios que se apresentam na formação do arquiteto e urbanista para torná-los cada vez mais aptos ao exercício da profissão no século XXI”, avalia Carlos Eduardo sobre o ensino de Arquitetura e Urbanismo no país.
1- Nestes últimos 20 anos quais as transformações sofridas pela categoria?
Acredito que um conjunto de fatores pode ter contribuído para provocar as grandes transformações globais sofridas pela categoria nos últimos 20 anos, especialmente a partir do final do século XX. No Brasil, eu destacaria, como um dos principais fatores dessas transformações, a retomada do crescimento econômico que, aliada à adoção de políticas governamentais inclusivas, permitiu o incremento e a melhor distribuição da renda entre a população, fazendo surgir no país uma nova classe social que passou a ter acesso a bens de consumo antes inatingíveis. Essa nova classe social, ávida por melhores condições de vida, vem financiando grande parte do desenvolvimento urbano nos últimos 20 anos, aquecendo a oferta de empregos e tornando o mercado de trabalho em arquitetura e urbanismo mais atrativo. Outro fator relevante que eu gostaria de destacar refere-se ao surgimento de novas tecnologias na área da engenharia que permitiu a produção de uma arquitetura contemporânea mais “ousada” e, como costuma dizer um grande amigo arquiteto, “espetaculosa”, ganhando cada vez mais espaço na mídia. Esses dois fatores vem atraindo para a profissão o interesse de um grande número de jovens que, após adquirirem a sua formação acadêmica, ingressam no mercado de trabalho, potencializando o surgimento de novos talentos impulsionadores de relevantes transformações no nosso campo de atuação profissional. Como exemplo, basta observar os últimos concursos de arquitetura e urbanismo para verificar que os participantes, e muitas vezes os vencedores, na sua grande maioria, são equipes compostas por jovens e talentosos profissionais.
2- Neste mesmo período, em função dos avanços tecnológicos, em particular a informática, quais as mudanças mais expressivas ocorridas no exercício da profissão?
Penso que o século XX foi, sem dúvida, o que apresentou as maiores e mais rápidas transformações relacionadas ao desenvolvimento da humanidade. No início utilizava-se o trem a vapor, e cem anos depois já se utilizava o trem de alta velocidade para percorrer longas distâncias. Do correio e do telégrafo chegou-se ao final do século à comunicação de forma global e praticamente instantânea através da Internet. Quando se percebe que essas mudanças aconteceram no intervalo de apenas cem anos é que nos damos conta da velocidade com que elas ocorreram. Na arquitetura não podia ser diferente. No século XX a prancheta, o lápis, o par de esquadros e a régua “T” eram os principais instrumentos de trabalho dos arquitetos. Cem anos depois o computador fez surgir uma nova geração de “cyber-arquitetos”. É impressionante a velocidade com que essas transformações aconteceram principalmente nos últimos vinte anos, e como elas vêm influenciando as relações de trabalho na nossa área de atuação. A informática atualmente faz parte da cultura profissional dos jovens arquitetos e urbanistas e a computação gráfica é sem dúvida uma ferramenta que nasceu predestinada a revolucionar o processo de criação e de produção da arquitetura contemporânea. Os jovens arquitetos e urbanistas possuem novos paradigmas e novas estruturas de trabalho que os diferenciam, em muito, dos profissionais preparados para enfrentar desafios e realidades do século passado.
3- Como resultado das perguntas anteriores, como você avalia os novos rumos da profissão em relação ao exercício e também ao produto arquitetônico?
Além dos avanços tecnológicos nas áreas da engenharia e da informática citados anteriormente como grandes agentes impulsionadores das transformações ocorridas no exercício da nossa profissão, não há como se desconsiderar, também, as transformações climáticas e a globalização, como fatores que exercerão forte influência na produção da arquitetura e do urbanismo do século XXI.
Com relação às transformações climáticas, por exemplo, essa questão levará, obrigatoriamente, os arquitetos e urbanistas a pensarem soluções para projetos de edifícios e cidades que priorizem a sustentabilidade ambiental, especialmente no que diz respeito ao consumo dos recursos naturais. Por outro lado, assistimos as mudanças provocadas pela globalização afetando claramente a produção do espaço urbano. Decorre daí a espetacularização das cidades amparada em um discurso que tem como fundamento o planejamento estratégico para a criação de novas centralidades, através de equipamentos corporativos, culturais e de lazer. A responsabilidade do arquiteto e urbanista passa a ter fundamental importância em toda a cadeia produtiva do espaço projetado e construído para assegurar as sustentabilidades social e cultural. A nossa cumplicidade e a nossa responsabilidade, para com as cidades e com o seu processo de urbanização, cresce de forma progressiva principalmente se considerarmos que mais da metade da população mundial vive hoje em cidades. As cidades devem estar daqui para frente no foco das atenções das políticas governamentais e cabe a nós, arquitetos e urbanistas, a responsabilidade de buscar soluções economicamente sustentáveis que objetivem, principalmente, a redução da pobreza. Por outro lado, percebe-se que o mercado globalizado vai clamar cada vez mais por profissionais de arquitetura e urbanismo com maior excelência em gestão internacional de negócios.
4- Na sua opinião, como deve ser a posição de nossas entidades em relação a presença de escritórios e empresas de projetos estrangeiras no mercado de trabalho brasileiro?
O ponto positivo da presença estrangeira no mercado brasileiro de produção da arquitetura e urbanismo relaciona-se a um conjunto de fatores que pode induzir mudanças significativas na estrutura dos setores empresarial e de prestação de serviços, principalmente no que diz respeito à capacidade dos profissionais atuarem em relação à gestão de projetos e à administração de negócios. Por outro lado, concordo com colegas que afirmam a necessidade de uma ação mais contundente do governo federal e do CAU no sentido de intermediar acordos bilaterais que garantam o princípio da reciprocidade para a atuação de empresas e profissionais estrangeiros no Brasil.
5- Com a saída dos arquitetos e urbanistas do sistema CREA/CONFEA e a criação do CAU – lei Nº 12.378 – como deverá se dar a divisão de atuação das demais entidades dos arquitetos?
Oportuno se faz lembrar que o CAU surgiu do movimento unificado das entidades que compõem o Colégio Brasileiro de Arquitetos – CBA. Entretanto, passada a fase de luta para a criação e instalação do nosso Conselho, entendo que cada uma dessas entidades deve voltar a seguir o seu caminho e desempenhar o papel corporativo que sempre tiveram na defesa de interesses específicos dos arquitetos e da arquitetura. Ao CAU, autarquia dotada de personalidade jurídica de direito público, com autonomia administrativa e financeira e estrutura federativa, cabe o cumprimento da Lei 12.378/2010. O Art. 24º § 1º traz como atribuição a função de orientar, disciplinar e fiscalizar o exercício da profissão de arquitetura e urbanismo, zelar pela fiel observância dos princípios de ética e disciplina da classe em todo o território nacional, bem como pugnar pelo aperfeiçoamento do exercício da arquitetura e urbanismo.
6- Como deverá ser equacionado o sombreamento da atuação profissional entre o arquiteto e o engenheiro civil, já que agora estão filiados em Conselhos próprios?
No meu entendimento não há o que discutir, tem que se cumprir imediatamente o que determina a lei. Apesar de entender ser essa uma questão delicada e cuja construção política deve ser pautada no entendimento amigável entre os dois conselhos profissionais, a Lei 12.378/2010 é clara em seu Art. 3º § 4º que prevê que na hipótese das normas do CAU/BR sobre o campo de atuação de arquitetos e urbanistas contradizerem normas de outro Conselho profissional, a controvérsia deve ser resolvida por meio de resolução conjunta de ambos os conselhos. Por sua vez o § 5º do mesmo artigo estabelece que enquanto não for editada a resolução conjunta de que trata o § 4º ou, em caso de impasse, até que seja resolvida a controvérsia, por arbitragem ou judicialmente, será aplicada a norma do Conselho que garanta ao profissional a maior margem de atuação. Uma coisa é certa, em hipótese nenhuma as diferenças que porventura venham a existir devem atingir os profissionais e a sociedade. Preocupam-me, por exemplo, as informações que nos chegam de que o atraso no estabelecimento de Resoluções conjuntas entre os dois conselhos vem comprometendo efetivamente a ação da fiscalização, especialmente no que diz respeito à questão da responsabilidade técnica sobre a obra.
7- Para efetiva aplicação das atribuições profissionais definidas pela Lei Nº 12.378, quais deverão ser as modificações no ensino de Arquitetura de modo adequá-lo ao que estabelece a lei?
Penso que não existe necessidade alguma de modificações no ensino de arquitetura e urbanismo de modo a adequá-lo a Lei 12.378, de 31/12/2010, uma vez que os campos de atuação profissional para o exercício da arquitetura e urbanismo, a que se refere o Art. 3º da referida lei, foram definidos a partir da Resolução MEC/CNE/CES nº 2 de 17 de junho de 2010. Essa Resolução institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de Graduação em Arquitetura e Urbanismo, nas quais os núcleos de conhecimentos de fundamentação e de conhecimentos profissionais caracterizam a unidade de atuação profissional. Há, sim, necessidade de ajustes pontuais nas Diretrizes Curriculares Nacionais em função dos novos desafios que se apresentam na formação do arquiteto e urbanista para torná-los cada vez mais aptos ao exercício da profissão no século XXI. Neste sentido, tenho informações de que a Associação Brasileira de Ensino de Arquitetura e Urbanismo – ABEA – já constituiu um grupo de trabalho para apreciar essa e outras questões junto ao Conselho Nacional de Educação – CNE.
8- Qual a sua opinião sobre a Política Habitacional e Urbana(s) desenvolvida(s) hoje no país?
Não há dúvida de que as ações que culminaram com a criação do Ministério das Cidades e da Secretaria Nacional de Habitação, a aprovação do Estatuto da Cidade, a formação dos Conselhos e Fundos de Habitação federal, estadual e municipal representaram o reconhecimento de que os imensos desafios urbanos e o grande déficit habitacional precisam ser encarados como uma política de Estado. A partir daí que muita coisa foi feita, especialmente no que diz respeito à redução do déficit habitacional. Contudo, apesar das ações implementadas pelo governo federal, estão repetindo vários erros cometidos no passado. Atualmente, mais de 80% da população brasileira mora em áreas urbanas e as cidades continuam a apresentar, entre outros, problemas comuns provocados na maioria dos casos pela falta de planejamento, reforma fundiária, controle sobre o uso e a ocupação do solo, acesso ao crédito e assistência técnica adequada. No entanto, o grande avanço que ocorreu nos últimos anos, a meu ver, foi a criação da Lei Federal nº 11.888 de 24 de dezembro de 2004 que assegura o acesso das famílias de baixa renda a Assistência Técnica Pública e Gratuita para o Projeto e a Construção de Habitação de Interesse Social. Neste sentido, acredito que o CAU tem muito a contribuir trabalhando em parceria com a união e com estados e municípios na implantação de um programa pioneiro de “Residência em Arquitetura e Urbanismo”, amparado no Art. 4º da referida lei que prevê serviços de assistência técnica objeto de convênios ou termos de parcerias, prestados por profissionais previamente credenciados, selecionados e contratados, para atuarem como integrantes de equipes de pessoa jurídica.
9- Como você classifica a qualidade da produção arquitetônica e urbanística em nossas cidades e até onde vai a responsabilidade dos arquitetos nestes projetos e obras?
Li recentemente artigo do arquiteto e professor da USP, João Whitaker Ferreira, onde ele coloca que a produção da arquitetura brasileira não pode se conformar em apontar apenas para os caminhos da “arquitetura de alta costura”, destinada ao mercado de alta renda, ou da “arquitetura de mercado” conformada com a mediocridade ditada pelos interesses imobiliários. Questiona o autor, se no primeiro caso não estaríamos errando ao exacerbar, cada vez mais, o culto à atividade profissional autoral destinada à produção de uma arquitetura voltada apenas para as camadas de alta renda, correndo o risco de limitar, perigosamente, o campo de atuação do arquiteto e urbanista a um mercado que é estruturalmente reduzido. Conclama-nos a discutirmos se não estaríamos nos arriscando a repetir os erros do passado que levaram nossa profissão a se distanciar da realidade urbana brasileira – uma tragédia em que quase a metade da população sequer tem acesso a moradia, quanto menos à arquitetura. Convido os mais céticos a apreciarem os últimos exemplares das duas principais revistas brasileiras especializadas para verificarem quantos artigos foram destinados à produção de uma arquitetura menos vistosa, mas cuja importância é fundamental para tirar a nossa profissão do impasse em que ela se encontra. No segundo caso, como bem coloca o Presidente Sydnei, o mercado imobiliário dita as regras, tornando o arquiteto refém do jogo de interesses especulativos. Concordo quando ele afirma que o caminho é a desregulamentação da legislação, o que permitirá ao profissional assumir a responsabilidade plena sobre o seu projeto, cabendo ao poder público determinar os parâmetros e índices urbanísticos e edilícios.
10- Quais deveriam ser as medidas concretas e objetivas de alteração da Lei Nº 8666 para que seja garantido o Concurso Público de Projetos como forma usual de licitação e contratação?
A Constituição Federal estabelece, no seu artigo 37, inciso XXI, entre outras questões, que os serviços no setor público sejam contratados mediante processo licitatório público. A Lei Federal nº 8.666/93, que regulamenta este artigo da Constituição, institui as normas para licitações e contratos na esfera da administração pública e no seu Art. 7º prescreve que as licitações para a execução de obras e para a prestação de serviços devem obedecer a seguinte sequência:
– elaboração de projeto básico, que constitui o conjunto de informações técnicas necessárias e suficientes para caracterizar a obra devendo ser elaborado com base em estudo preliminar que apresente o detalhamento necessário à perfeita definição e quantificação dos materiais, equipamentos e serviços relativos ao empreendimento;
– projeto executivo, caracterizado pelo conjunto de informações técnicas necessárias e suficientes para a realização do empreendimento, contendo de forma clara, precisa e completa todas as indicações e detalhes construtivos para a perfeita instalação, montagem e execução da obra e;
– execução das obras e serviços propriamente dita.
A questão contraditória, e que a meu ver necessita modificação, reside nos parágrafos 1º e 2º do Art. 7º da referida lei que abre caminho para o desenvolvimento do Projeto Executivo concomitantemente com a execução da obra e a possibilidade de abertura de licitação de obra utilizando apenas o projeto básico. Como resultado, e venho vivenciado isso há anos no serviço público federal, temos obras mal concebidas do ponto de vista arquitetônico e de péssima qualidade de acabamento, comprometendo efetivamente a sua aparência, funcionalidade e durabilidade. No meu entendimento, o projeto arquitetônico, desde a fase de concepção até a fase executiva, é pressuposto básico para licitação e o início de qualquer obra pública onde se pretenda obter qualidade. Se o órgão público não tem capacidade técnica para desenvolvê-lo, deve contratar prestação de serviço através de concurso público, e isso deve estar claro no corpo da lei.