Fenômenos mundiais, as migrações campo-cidade, os inchaços urbanos, a sub-habitação e os resultados das propostas urbanísticas que tentaram superar o problema são matérias conhecidas e, ainda hoje, objeto da atenção de profissionais de diferentes áreas.
Dentre os centros urbanos brasileiros, o Rio de Janeiro, ao sofrer a favelização de seus espaços urbanos, serviu a experimentos drásticos (remoções truculentas), alguns cômicos (nos anos 50, a proposta oficial sugeria pintar os barracos com cores alegres) e outros conduzidos com seriedade. Nada disto significa que se tenham encontrado soluções salvadoras, definitivas e genéricas, tal a gravidade e a diversidade do problema.
Trata-se de um campo de trabalho repleto de desafios. Cabe avaliar o espectro no qual se movem os profissionais da arquitetura e do urbanismo, pois, intervenções de viés político, envolvem projetos interdisciplinares gerando propostas, muitas vezes, experimentais. Uma luta contra o tempo, uma vez que os problemas surgem e crescem em velocidade superior ao implemento das ações que os enfrentam e os resultados só podem ser aferidos em tempo superior ao tempo dos políticos e acima de suas disputas. Talvez por isto, programas criados em um mandato do poder executivo são logo adiante interrompidos (ou esquecidos?) deixando, para a sociedade, o sabor do fracasso e, pior, a suspeita do desleixo e da desonestidade de propósitos.
Reconhecendo virtudes e admitindo probidade em ações voltadas para a habitação, cabe também observar que os desvios ou fracassos correram por conta da magnitude do problema. Não há perspectiva concreta de que cessem por completo as migrações para os centros urbanos (embora em declínio) e de que a distribuição de renda se faça ágil e em paralelo com uma compatível oferta do mercado imobiliário. Persistem, assim, nos assentamentos de baixa renda os problemas de habitabilidade, sobretudo nas questões sanitárias, agravados pela criminalidade. Assim, vistas as comunidades mais populosas sob um ponto de vista não mais excludente, busca-se integrá-las ao tecido urbano mais qualificado, através de intervenções físicas e sociais.
Porém, a sub-habitação, aquela que não dispõe de segurança construtiva e de condições higiênicas, em qualquer sítio, tem consequências nefastas. Em locais de risco iminente – pântanos, margens de cursos d’água destruindo a mata ciliar e encostas íngremes – aproxima-se da tragédia. Ao defrontar-se o poder público com tais assentamentos, impõe-se a imediata remoção. Hesitações em proceder à intervenção são explicáveis, jamais aceitáveis. A ação exige a rápida construção de unidades habitacionais qualificadas espacial e tecnicamente.
Desastre no Bumba
É o que aconteceu com a tardia remoção dos ocupantes do morro do Bumba, em Niterói. Tangidos pela desgraça em 2010, ganharam instalações improvisadas, aguardando a oferta de um melhor espaço para habitar. Outra área lhes foi reservada, no bairro do Fonseca, sendo elaborado o projeto de novas moradias. Iniciadas as obras, ocorre o desastre na construção, em plena fase executiva, apresentando danos estruturais inexplicáveis em dois dos 11 blocos erguidos. Para a opinião pública, prédios que se arruínam em plena execução, ameaçando tombar, atraem as suspeitas da incompetência e da desonestidade.
Como se desenvolveu o trabalho de coordenação do arquiteto entre projeto e obra? Onde se rompeu o elo?
Admitindo que a obra chegou àquele estágio após uma Licitação na qual cumpriu-se o disposto na Lei 8.666 de 21 de junho de 1993, o projeto teria sido elaborado e detalhado, definindo-se com clareza o sistema construtivo. É o que estabelece a Seção III, no parágrafo 2º, da referida Lei. Pelo que se sabe, na execução da obra foi adotado o sistema de “paredes portantes” utilizando-se a alvenaria armada, factível, claro, embora arriscado para solos instáveis. Fortes chuvas teriam “lavado” o subsolo, descalçando os prédios. No campo das hipóteses, nebulosas, as fundações não teriam levado em conta tal ocorrência ou os estudos geológicos foram insuficientes.
Sendo a obra, por óbvio, contratada através de uma Licitação, o Projeto de Arquitetura foi o instrumento iniciador e, em sua maturação, o guia do processo. Estabelece a Lei 8.666 em seu artigo que a Licitação será feita sobre o PROJETO BÁSICO (definido na Seção II, Artigo 6º, parágrafo IX) indicação preocupante e merecedora de discussão mais ampla por parte dos órgãos responsáveis, técnicos ou políticos. É possível realizar-se uma confiável Licitação nesta fase do projeto?
Ora, consecutivo a ele e no mesmo instrumento legal (Seção II, Artigo6º, parágrafo X) é destacado o PROJETO EXECUTIVO, para o qual convergem, de fato, TODOS os projetos complementares. Os arquitetos não ignoram que esta, sim, é a fase crucial para o bom resultado da obra. Profissionais experientes que se valeram, no ANTEPROJETO (não cogitado na Lei), de consultorias eficazes nas áreas da infra-estrutura (fundações), da super estrutura e das redes de instalações, sabem que o PROJETO EXECUTIVO é momento-chave, quando podem ocorrer alterações – mesmo de pequeno porte – que mudam quantitativos, afetando o orçamento preliminar.
Dificilmente terá sucesso uma obra orçada sobre projeto detalhado e especificado de modo apenas parcial. Se a exposição acima é válida, uma obra já contratada que se defronte com a imperiosa alteração de seus custos, exigirá aditivos contratuais e retificações forçando as revisões orçamentárias. A escolha de um terreno, salvo raras situações, exige um prévio conhecimento de sua condição geológica o que apontará para alternativas estruturais e sistemas de fundações compatíveis com o solo onde a obra será erguida. A opção pelo melhor (mais seguro e mais econômico) sistema estrutural só poderá ser definido quando conhecidas as premissas geológicas. O PROJETO EXECUTIVO torna-se confiável após o movimento pendular entre projetistas das diferentes áreas, cabendo ao arquiteto a articulação interdisciplinar. Custos inesperados, prazos alongados e riscos de acidentes são eliminados ou, na pior das hipóteses, bastante minimizados. Cabe perguntar: como o PROJETO BÁSICO poderá oferecer as mesmas garantias? Ou apenas fará com que os projetistas das diferentes áreas fiquem manietados e inseguros quanto aos resultados práticos?
Se a preocupação é a urgência da obra, o transtorno causado pelo acidente no atendimento às vítimas do Bumba é de difícil superação e os custos sociais poderão crescer de forma incontrolável. Enquanto pendente de solução definitiva para abrigá-los, aqueles desvalidos fazem jus a um “aluguel social”.
Limites éticos e orçamentários, interesses profissionais e políticos confundem-se para prejuízo geral. No caso enfocado, se alguém irá para a berlinda, além dos políticos, este alguém é o autor do projeto, dentro da nebulosa em que permanece a participação dos arquitetos no processo. Quem definiu o terreno onde foi erguida a obra? O arquiteto teria participado da escolha? Os estudos geológicos, se feitos, terão sido suficientemente esclarecedores? O PROJETO BÁSICO já poderia contemplar, com suficiente clareza, o sistema a ser utilizado nas fundações?
Esclarecidas as responsabilidades, sanções podem ser aplicadas, sendo punidos profissionais ou políticos. O tempo, porém, ninguém recupera e as vítimas da tragédia do Bumba, mal acomodadas, continuarão a esperar, sine die, soluções para seus problemas. Há anos, alojaram-se improvisadamente sobre um aterro sanitário e, criminosamente, foi permitido que lá ficassem (pior: recalcitrantes ainda permanecem na área), embora o desastre fosse previsível, como em outros espaços do estado e do município, vez que falamos do Rio de Janeiro.
Onde estará o “vício”? Nos instrumentos legais? Nos procedimentos burocráticos? O “vício” (se existe) é o fermento que induz ao fracasso e á corrupção. A opção de licitar-se sobre o PROJETO BÁSICO queimaria etapas ou aumentaria riscos na execução de obras? Se a participação dos arquitetos no processo é crucial, seu nome e seu prestígio não podem ficar lesionados, limitados à elaboração do ANTEPROJETO, afastados de sua plena coordenação, e a supervisão de orçamentos, inquestionáveis atribuições legais.
Aqui foi abordado um desastre público e as ações insuficientes para saná-lo. Comunidades carentes em outras áreas aguardam medidas do poder público onde o arquiteto deverá estar presente. Outros de seus desempenhos podem, pelo menos, reduzir os riscos nas construções em assentamentos já agregados ao tecido urbano. Prestando assistência e consultoria técnica para as comunidades, identificando problemas nos espaços por elas ocupados, poderia o arquiteto estabelecer pontes entre elas e o poder público, dando apoio aos moradores e ganhando tempo para que as autoridades planejassem e antecipassem as intervenções exigidas.
Entidades profissionais, para o bem da sociedade e da população, deveriam se debruçar sobre as questões levantadas. CAU, CREA, IAB, Clube de Engenharia, Universidades e outros órgãos responsáveis deverão enfocar o assunto e estudá-lo para que os desastres não se repitam.
O afastamento dos arquitetos e dos urbanistas no processo do espaço construído é preocupante. As soluções plásticas não excluem o rigor com a estabilidade. Se forem aceitas, porém, as construções improvisadas que, pelo menos, as propostas de intervenção feitas pela camada erudita lhes garanta a solidez. Que o inspirado “risco” não crie “tetos com risco”.