“Não há como o exercício da profissão desconsiderar a realidade da sociedade contemporânea e os seus valores atuais. Neste sentido, o produto arquitetônico tende a valorizar a dimensão urbana do projeto, priorizando a sustentabilidade econômica, social e ambiental e os aspectos sociais e culturais”, avalia Jeferson Salazar.
1- Nestes últimos 20 anos quais as transformações sofridas pela categoria?
As mudanças na sociedade brasileira estão em sintonia com as mudanças globais – revolução tecnológica, integração internacional casada com exclusão, mudanças nos hábitos e na cultura – tudo isto ocorrendo em um momento de crise do Estado e recessão (anos 80 e 90) e retomada da expansão econômica, ainda que apoiada no consumo. O Brasil é um dos países que viveu um processo de urbanização muito rápido, sem planejamento adequado ou sem nenhum. Hoje, temos quase 90% da população brasileira vivendo no ambiente urbano, decorrendo daí o colapso das infraestruturas das cidades. Temos em comum com a Índia e os demais países da América latina este processo de explosão urbana e precarização, mas na última década tivemos um importante processo de redução das desigualdades sociais, resultado de políticas públicas de redistribuição de renda. Os movimentos sociais, principalmente os de luta pela moradia, avançaram bastante na sua organização e concepção de sociedade, inclusive com reivindicações muito mais qualificadas. Este avanço terá reflexos positivos nos cursos de formação superior, especialmente, nos cursos de arquitetura e urbanismo, cuja visão da profissão ainda é voltada para a alta renda. Não é um fato isolado o surgimento de movimentos destinados à ampliação do acesso à arquitetura nas escolas e na profissão. E entidades como a FNA fazem parte deste esforço.
2- Neste mesmo período, em função dos avanços tecnológicos em particular a informática, quais as mudanças mais expressivas ocorridas no exercício da profissão?
Hoje, diversos profissionais podem trabalhar simultaneamente em um mesmo projeto sem necessariamente compartilhar um mesmo espaço físico, nem estar na mesma cidade ou país, permitindo que escritórios e equipes estejam em conectividade direta e permanente. Entretanto, a revolução tecnológica ainda não é acessível a todos os segmentos da cadeia produtiva, nem a todos os profissionais. Se por um lado os preços dos programas especializados são proibitivos para grande parcela dos profissionais, por outro lado há profissionais que contribuem para o aviltamento da profissão e para o rebaixamento dos honorários, vendendo projetos em sites de compra coletiva a preços vergonhosos, uma postura antiética e desafiadora aos demais profissionais e ao próprio CAU.
3- Como resultado das perguntas anteriores, como você avalia os novos rumos da profissão em relação ao exercício e também ao produto arquitetônico?
Não há como o exercício da profissão desconsiderar a realidade da sociedade contemporânea e os seus valores atuais. Neste sentido, o produto arquitetônico tende a valorizar a dimensão urbana do projeto, priorizando a sustentabilidade econômica, social e ambiental e os aspectos sociais e culturais.
4- Na sua opinião, como deve ser a posição de nossas entidades em relação a presença de escritórios e empresas de projetos estrangeiras no mercado de trabalho brasileiro?
Em um raciocínio mais simplista, a presença de escritórios e empresas de projetos estrangeiros são elementos desafiadores que nos colocam no dilema entre ser contra ou ser a favor. Entretanto, a realidade das relações internacionais associada à realidade dos avanços tecnológicos, em especial da informática, não nos darão opções simples. Temos muito a aprender e a ensinar e as entidades devem assumir uma condução proativa – apontar a importância do princípio da reciprocidade entre os países e entre os profissionais arquitetos e urbanistas. Respeitado o princípio da reciprocidade, os arquitetos e urbanistas brasileiros devem partir para ações destinadas ao estabelecimento de parcerias em que a presença internacional contribua para a qualidade do produto arquitetônico e valorize o mercado interno.
5- Com a saída dos arquitetos e urbanistas do sistema CREA/CONFEA e a criação do CAU – lei Nº 12.378 – como deverá se dar a divisão de atuação das demais entidades dos arquitetos?
As nossas entidades são distintas e cada qual tem seu espaço de ação específico e não são concorrentes entre si. Amadurecemos na construção do entendimento de complementariedade das nossas entidades. E foi deste entendimento que nasceu a unidade que forjou as condições necessárias para a aprovação da Lei 12.378/2010, que criou o Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil – CAU, fruto inquestionável do mérito da ação coletiva do CBA, em que nenhuma entidade se sobrepôs ou se julgou mais importante do que as demais neste longo processo de luta a favor da arquitetura e urbanismo no Brasil.
O entendimento de complementariedade reforça nossas entidades e o nosso Conselho. Também reforça os laços de fraternidade construídos nas ações e lutas conjuntas e fortalece a todos, contribuindo para dar coesão ao espírito colaborativo existente entre nossas entidades e entre estas e o nosso Conselho.
6- Como deverá ser equacionado o sombreamento da atuação profissional entre o arquiteto e o engenheiro civil, já que agora estão filiados em Conselhos próprios?
O sombreamento de atribuições profissionais é a pauta mais importante desde a aprovação da Lei 12.378/2010. O CAU/BR tem que definir, urgentemente, quais são as áreas de atuação privativas dos arquitetos e urbanistas e as áreas de atuação compartilhadas com outras profissões regulamentadas, conforme preconiza o § 1o do Art. 3o da referida Lei. Enquanto não tivermos uma Resolução neste sentido, a própria fiscalização do exercício profissional fica comprometida. Afinal, como fiscalizar o exercício da profissão se não temos a definição do que deve ser atuação privativa dos arquitetos e urbanistas e o que pode ser compartilhado com outras profissões? Como informar à sociedade brasileira que elaborar projetos de arquitetura é uma atividade exclusiva dos arquitetos e urbanistas, se não temos uma resolução neste sentido? Como combater o exercício ilegal da profissão? Evidentemente que a Resolução sozinha não resolverá o sombreamento, mas ela é a principal ferramenta para avançarmos neste sentido.
7- Para efetiva aplicação das atribuições profissionais definidas pela Lei Nº 12.378, quais deverão ser as modificações no ensino de Arquitetura de modo adequá-lo ao que estabelece a lei?
Este não é um debate simples e que se possa fazer apenas no âmbito das nossas entidades e do CAU. O Ministério da Educação e as Universidades têm que estar envolvidos porque não há fórmula mágica. Devemos atentar para o dado assustador de que quase 80% das construções nas cidades brasileiras são produzidas de maneira informal, sem qualquer participação de arquitetos e urbanistas, embora a quantidade de cursos de arquitetura e urbanismo tenha crescido mais de seis vezes nos últimos 25 anos. Hoje são formados anualmente mais de sete mil jovens arquitetos e urbanistas, número que tende a crescer nos próximos anos. Entretanto, também temos que estar atentos para outro movimento importante: a sociedade mudou e uma parcela significativa dos movimentos sociais começou a enxergar a importância da nossa profissão para a qualidade de vida da sociedade como um todo e não apenas das classes sociais de maior poder aquisitivo. Desta forma, o ensino de arquitetura e urbanismo deverá ter um olhar mais acurado para esta parcela da sociedade e para a função social da arquitetura e urbanismo, que em síntese é a essência da própria razão de existir da profissão.
8- Qual a sua opinião sobre a Política Habitacional e Urbana(s) desenvolvida(s) hoje no país?
Lamentavelmente, para as autoridades públicas o projeto de arquitetura e urbanismo não tem relevância e o que conta é a quantidade. Estamos repetindo a política de produção de moradia que foi realizada no período do SFH, talvez com impactos maiores, de um lado pela escala, de outro pela condição de dispersão que vivem as cidades. Enfim, estamos produzindo unidades habitacionais e não cidades. Recentemente, estive em Rio Branco, Acre, capital onde estão sendo construídas mais de dez mil unidades residenciais em uma área totalmente afastada da cidade e, consequentemente, dos serviços urbanos básicos. Ironicamente o empreendimento foi batizado com o nome de “Cidade do Povo”. Ou seja, povo bom é povo longe da cidade formal, que a frequenta apenas para produzir riquezas. Esta lógica perversa ainda persiste no ideário dos nossos gestores públicos.
9- Como você classifica a qualidade da produção arquitetônica e urbanística em nossas cidades e até onde vai a responsabilidade dos arquitetos nestes projetos e obras?
Embora tenhamos arquitetos e urbanistas desenvolvendo projetos de qualidade nas cidades brasileiras, podemos afirmar genericamente que a produção é ruim porque a arquitetura perdeu espaço nos últimos 50 anos. Um exemplo disso é a Lei 8.666, que sequer contempla os serviços de arquitetura. Ou seja, o projeto de arquitetura é tratado como parte da obra, quando o correto é a contratação do projeto antecedendo a contratação da obra, de forma que se possa projetar, detalhar, especificar, orçar, planejar e, finalmente, executar com o menor custo. Mas ao contrário disso, as autoridades investiram no famigerado Regime Diferenciado de Contratação (RDC), criado para atender as obras do PAC e que constitui uma verdadeira excrescência jurídica, atentando contra a boa técnica e a qualidade dos projetos e obras públicas. Este pacote de bondades com o dinheiro público atende a outros interesses, menos aos interesses da sociedade brasileira. Diante deste quadro, os arquitetos e urbanistas não têm responsabilidade direta, ainda que ouçamos manifestações diversas sobre a qualidade do ensino de arquitetura e urbanismo no Brasil. O concurso público como forma de contratação de projetos de arquitetura é um forte instrumento de divulgação da boa arquitetura e de valorização da profissão, e contribuiria para superarmos essa sensação de uma produção arquitetônica de qualidade duvidosa.
10- Quais deveriam ser as medidas concretas e objetivas de alteração da Lei Nº 8666 para que seja garantido o Concurso Público de Projetos como forma usual de licitação e contratação?
A questão central é que se não nos mobilizarmos, a Lei 8.666 tende a ser cada vez mais ignorada e o RDC foi uma verdadeira pá de cal na Lei 8.666. E esta constatação nos impõe o desafio de participar mais decididamente do debate sobre a reformulação da Lei 8.666 e as condições para que ela seja respeitada. Neste sentido, a FNA e a AsBEA estão em entendimentos para realizar um seminário sobre a referida Lei, do qual esperamos que resulte em propostas concretas e viáveis. Não basta mais ter leis rigorosas. Temos que ter leis que sejam cumpridas. Por outro lado, o próprio concurso público tem que ser repensado, embora seja a forma mais democrática de contratação de projetos de arquitetura. Desta forma, acredito que, além de um júri técnico, o concurso para projetos de arquitetura também tem que ter um processo de julgamento popular, no qual os futuros usuários possam se manifestar e interferir na decisão final.