Uma suposta utopia, Brasília, a nova capital brasileira, permitiu que se reconhecesse a validade dos conceitos modernistas. A partir do nada concreto, da tabula rasa, brotou uma cidade. A partir de um sonho, foi possível realizá-la. Por outro lado, constatou-se que intervenções urbanas sob o mesmo ideário, em espaços consolidados e tradicionais, poderiam trazer mais conflitos do que soluções.
Próximo aos nossos dias, lembramos o Rio de Janeiro de Lacerda e Doxiadis. Sofrendo as heranças da explosão demográfica e dos inchaços urbanos dos anos de 1940-1950, transformado em pequeno, mas poderoso Estado, foi ele focado à luz de propostas vanguardistas e de certo deslumbramento tecnológico. A radical noção de decadência trouxe sérios impasses urbanos ao serem feridos bairros tradicionais da cidade, como o Catumbi e o Rio Comprido. A perda da Centralidade, um dos resultados mais graves provocados pelas transformações sofridas, não foi devidamente avaliada ou abordada com profundidade.
Um novo enfoque é lançado sobre o meio urbano, reconhecendo a participação dos seus habitantes, realizando obras reparadoras, novas legislações ou políticas de assentamento, recuperando e restaurando espaços históricos ou tradicionais. É o caso da requalificação experimentada em Londres e a bem sucedida revitalização de Barcelona. Ostensivamente acionadas por eventos destinados à massa, não só fizeram vingar um novo ideário de urbanismo, como revelaram que as crises econômicas podem provocar soluções criativas e, sobretudo, duradouras.
Fonte: http://www.terra.com.br/esportes/jogos-olimpicos/infograficos/parque-olimpico-london-2012/
Londres experimentou recuperar a área de Stratford, degradada pela presença de lixões e atividades ilícitas, com a implantação do parque Olímpico e a reestruturação de linhas do Metrô, indispensáveis à realização do evento.
Barcelona retrabalhou sua história secular para consolidar uma vocação turística e de valorização do passado histórico, como, por exemplo, as obras inquietantes de Antonio Gaudi. Ao mesmo tempo, ostensivamente, incorporou um acervo de obras arquitetônicas de arrojado efeito destinadas a atuar mais fortemente no imaginário turístico do que nas tradições catalãs.
Fonte: reprodução da internet
E se nos afastarmos do Velho Mundo, podemos destacar Buenos Aires e a conhecida revitalização da zona portuária, situação paradoxal, visto que a bela cidade argentina, em certa medida, isola-se do porto. O apelo para integrá-lo – sem o qual a renovação da área perderia a força – incorporou obras urbanas em diferentes setores valorizando a paisagem urbana. O tratamento paisagístico e a implantação de obras de arte nos trajetos urbanos parecem homenagear um compromisso cultural manifestado por sua orgulhosa população.
Fonte: http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=676830
No Rio de Janeiro, após duro período de descaso com seus espaços tradicionais e monumentos importantes, a Cidade despertou para o perigo de perder o patrimônio de séculos, dando surgimento a propostas criativas, como o Corredor Cultural, valorizando o remanescente acervo arquitetônico carioca do século XIX e do início do século XX. Mais recentes, as episódicas intervenções do Rio-Cidade e do Favela Bairro, anunciaram mudanças nas atitudes de dirigentes e de urbanistas. Lamentando-se a lentidão e a descontinuidade, restaurações de monumentos, ainda que pontuais e tímidas, reforçam nova postura face a vida urbana, criando a esperança em melhores resultados.
Vivendo contradições, a Cidade de hoje parece buscar sua melhor fisionomia através de projetos mais ousados. A já tardia ampliação da rede metroviária, os corredores de ônibus expressos e, sobretudo, a requalificação dos espaços distantes dos privilegiados bairros da Zona Sul, trazem novo alento aos cariocas.
Em céu tão azul, contudo, pairam nuvens de incerteza.
Espera-se demanda maior pela participação da sociedade em projetos que afetam a vida urbana, independente das inegáveis complexidades técnicas e tecnológicas que os envolvem. Sensibilidade política não significa capitulação, e não seria demais exigir-se que o poder público deixasse mais claro seus objetivos e tentasse um maior envolvimento neles por parte das representações da cidadania, como Associações de Moradores e de outras categorias.
Os profissionais da arquitetura e do urbanismo ainda aguardam chamada mais explícita para a participação efetiva nos planos anunciados. A presença de escritórios estrangeiros produzindo projetos sob a chancela de profissionais brasileiros e a convocação de arquitetos estrangeiros internacionalmente conhecidos para a realização de projetos emblemáticos causam mal estar e terão que ser discutidas em instâncias apropriadas. Cumpre sempre, em julgamento isento, reconhecer o inegável brilho dos nomes convocados e, mais que isto, o sentido de griffe contido nas contratações. Revela-se, porém, certa falta de sensibilidade e cultura, com sobras de deslumbramento, por parte de nossas autoridades.
Surgem constrangimentos criados pelas interferências dos patrocinadores dos eventos esportivos a se realizarem no Brasil (FIFA e COI). Medidas drásticas devem ser justificadas e conduzidas com mais respeito à população.
Nesta ordem de ideias podemos fazer parcial avaliação da proposta e das obras em curso na área do Cais do Porto carioca, o já consagrado Porto Maravilha (criado pela Lei Municipal complementar número 101/2009) destinado a se tornar novo cartão postal da Cidade Maravilhosa. Contida na proposta, a recuperação da centralidade e a regeneração de uma infraestrutura instalada, porém, subutilizada, são pontos positivos para a urbe carioca.
Mesmo assim, no conjunto de propostas contidas no Plano do Porto Maravilha, ressaltam dois aspectos extremamente polêmicos. São eles: a demolição do elevado da perimetral a ser substituído por pistas subterrâneas e binário ao longo da Avenida Rodrigues Alves e a implantação de torres destinadas às funções de comércio e moradia com 50 pavimentos – através dos estímulos à construção contidos nos CEPACS (Certificados de Potencial Adicional Construtivo).
No primeiro item, o alto custo de tais obras – de extrema complexidade técnica – e os transtornos por tempo prolongado para a mudança do sistema de circulação, afligem a população. O retorno financeiro de tais obras é quase impossível de avaliar, pois dependerá da presteza com que as mesmas serão feitas e a oferta imediata de pistas confiáveis para o fluxo de veículos. Assim como é imponderável o grau de satisfação a ser obtido pela população usuária.
Como novos estudos foram feitos a favor da permanência do elevado, com alternativas que realizem a integração de espaços perseguida no Plano, caberá aos seus mentores uma avaliação isenta para conciliar objetivos e resultados.
A proposta de grandes edifícios com altura permitida de 50 pavimentos, pertence ao catecismo da atualidade. As torres trarão interferência na paisagem carioca, onde a vista amena das montanhas é uma expectativa secular e condição assimilada no ideário dos cariocas. Entra em conflito com a justa manutenção de edifícios de pequena altura, próximos aos três morros existentes, no quadrilátero de intervenção.
Fonte: http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=1524198
Na mesma linha, a ameaça de se erguer as gigantescas Trump Towers na Avenida Francisco Bicalho, artéria de fechamento do quadrilátero destinado ao Porto Maravilha, deverá ser melhor avaliada quanto a seus impactos na área e no imaginário urbano.
Compreende-se que a densidade de ocupação no complexo do Porto é condição especial para os objetivos do plano, com alternativas que atendam aos investidores. Mas não bastará à municipalidade justificar sua tolerância ao projeto sob o pretexto de atrair investimentos e a consequente ocupação ativa da área.
Ainda que as expectativas sejam favoráveis, a história de intervenções urbanas no Rio inquieta seus habitantes. Reconhecendo-se a amplitude e a complexidade das obras, baixa a sombra de uma maldição que persegue os cariocas: obras grandiosas, drásticas e… inacabadas, jamais entregues para o uso do cidadão.
Restará a imagem de uma cidade redesenhada nos folhetos e nas telas dos monitores, enquanto espaços vazios e tristes ruínas contarão uma história de incúria?