
Quando foi procurado, 20 anos atrás, por uma liderança comunitária para “embelezar” a Rocinha, Luiz Carlos Toledo não imaginava que sua carreira, até então voltada ao planejamento urbano e à arquitetura hospitalar, ganharia um novo rumo.
O arquiteto e urbanista voltou diversas vezes à favela e formulou, com a participação da população local, o Plano Diretor Sócioespacial da comunidade. O resultado de anos de pesquisa é detalhado no livro recém-lançado “Repensando as Habitações de Interesse Social”, um dos projetos selecionados no Programa CAU/RJ de Patrocínio Cultural.
Formado pela FAU/UFRJ em 1966, Toledo é mestre e doutor pela mesma instituição. Ele conta ao CAU/RJ, com modéstia e humor refinado, sua trajetória permeada por grandes nomes da arquitetura, prêmios e pelo trabalho voltado para as obras de interesse social e até um puxadinho à passarela de Oscar Niemeyer.
Que o retorno o senhor está tendo com o livro Repensando as Habitações de Interesse Social?
Eu não esperava uma acolhida tão boa. Com a venda, esperamos agora uma segunda edição, mais simples, a preço de custo. O patrocínio do CAU/RJ foi muito importante pelo tema do livro. Hoje a arquitetura é muito midiática, fora das necessidades da população de menor poder aquisitivo. Quando eu era estudante, era muito mais comum os arquitetos se interessarem por problemas sociais. O Luiz Fernando [de Almeida Freitas] trabalha com isso em Manaus, o Nabil Bonduki acabou de fazer um levantamento exaustivo das habitações para a população. Mas não é a prioridade.
Quais foram suas influências profissionais?
Sou filho de arquiteto. Meu pai, Alday Toledo, foi um arquiteto consagrado, importante da arquitetura moderna brasileira. O arquiteto da família foi ele e cresci nesse meio. O Lelé [João Filgueiras Lima] ia uma vez por semana lá em casa. Tive a sorte de conviver, desde garoto, com grandes “cobras” da arquitetura: Ary Garcia Roza, Jorge Moreira, Roberto Nadalutti. Também tive a sorte de ficar muito amigo do Carlos Nelson, o trabalho dele teve grande influência na minha vida, inclusive nas ideias desse livro. O livro foi fundamentado no pensamento e nas ações dele e do Lelé que, para mim, são importantíssimos.
Como a Rocinha surgiu em sua trajetória profissional?
Há uns 20 anos fui procurado em meu escritório pelo administrador regional e morador da Rocinha, Jorge “Mamão” [Nascimento da Silva] e a presidente da associação de moradores. Estavam procurando um arquiteto “do asfalto” para deixar a Rocinha mais bonita. Disse que não era a pessoa indicada, mas o Jorge Mamão elogiou meu trabalho no Méier [Rio Cidade Méier]. Como arquiteto tem um ego enorme, aceitei e comecei a ir para a Rocinha todo fim de semana.
Um dia, observei como as lajes eram usadas para recreação e como faltavam áreas planas na Rocinha para essas atividades. Nesse mesmo dia eu tinha visto um atropelamento na Autoestrada Lagoa-Barra que mexeu comigo. Então visualizei, como um sonho, uma laje grande na saída do túnel, com uma área para quadras de esporte, que diminuiria os riscos de atropelamento.
O Luiz Paulo Conde, prefeito na época, adorou a ideia, que chamou de Vila Olímpica da Rocinha, e me contratou para desenvolvê-la. Eu costurei o projeto com os moradores. O projeto chegou a ser licitado, mas o governo seguinte, do César Maia, derrubou a ideia. Eu fiquei doente internamente. Passei anos sem ir à Rocinha.
Quando o senhor retornou?
Quando teve o concurso do IAB para o Plano Diretor resolvi participar. Colocamos moradores da própria Rocinha na equipe e isso fez a gente ganhar. Montamos o escritório dentro da Rocinha. Quando, anos mais tarde, a Finep lançou a pesquisa sobre Habitação de Interesse Social (HIS), resolvi usar a Rocinha. Tinha toda a topografia, podia fazer um projeto que respondesse a problemas reais que eles tinham lá, além da ligação que tenho com os moradores. A Rocinha só entrou como estudo de caso. Esses predinhos do livro são para qualquer lugar. A partir dessa pesquisa, escrevi o livro.
Como melhorar as condições de habitabilidade e oferecer infraestrutura urbana e equipamentos socioculturais nas favelas cariocas?
Você pode construir as habitações sociais no fim do mundo, sem transporte, sem esgoto, sem água, sem nada, como muitas vezes é feito no Minha Casa Minha Vida. As habitações, com raras exceções, são muito mal construídas. No morro do Bumba, antes de ser ocupada, a habitação já está ruindo. Materiais e projetos de má qualidade.
A ideia original do livro é de HIS inseridas em estruturas urbanas já consolidadas e com um papel mais abrangente. Além de fornecer moradia digna, as HIS podem organizar o espaço urbano. Nos meus prédios, as escadas não servem apenas para os moradores circularem, mas para a população como um todo. Ao fazer um prédio, posso levantá-lo em pilotis, dispor na cobertura de áreas de lazer para os moradores e colocar comércio e áreas de lazer para a comunidade inteira no térreo.
Outra proposta inovadora é a forma de construir. No livro, eu proponho que, em vez de construídas, as habitações sejam montadas. Se eu tenho uma estrutura metálica fixa que não dá um centímetro de erro ao ser montada, painéis que podem ser fixados para fazer o fechamento, se posso usar a parede interna com gesso cartonado, eu faço uma construção da favela com o padrão da construção aqui debaixo.
Como se dá a troca de conhecimento entre os pedreiros, que têm a experiência prática de construção na favela, e os arquitetos?
Quando o Brizola garantiu a permanência dos moradores, eles começaram a construir em alvenaria, mas essas construções não foram acompanhadas nem por arquitetos, nem por engenheiros. Eles erram no dimensionamento, não respeitam norma de ventilação e de iluminação. Se a pessoa tiver algum problema de mobilidade, não consegue subir porque os degraus são muito altos. Não são todas as obras, mas há um enorme desperdício de material e uma organização de espaço muito ruim. Constroem e projetam mal porque não foram capacitados para isso. A falta de capacitação, de assistência, é uma tragédia na Rocinha. O Brasil tem leis que pegam, tem leis que não pegam, mas a Lei da Assistência Técnica é fundamental.
Qual é sua avaliação em relação ao teleférico?
Projetamos cinco planos inclinados que resolvem o problema perfeitamente bem. Foram feitos para os moradores, não para turistas. [O teleférico] não tira o lixo, não leva material de construção, um idoso, uma pessoa com dificuldade motora não entra ali, você não pode viajar com uma caixa.
Como a população da Rocinha contribuiu para a realização da pesquisa?
Quem me ensinou sobre a Rocinha foram eles. Se capacitei alguma dessas pessoas para trabalhar, eles me capacitaram para compreender a Rocinha com os olhos deles. Qualquer urbanista bem intencionado deseja cidades mais compactas para que a infraestrutura seja melhor aproveitada. Eles nos ensinaram a ter uma ocupação de alta densidade. A Rocinha pode nos ajudar a pensar em cidade onde as pessoas andem mais.
É verdade que o senhor convenceu Oscar Niemeyer a fazer o projeto da passarela que liga a Rocinha ao Complexo Esportivo?
Lembrei dele porque sempre que o Wiliam [de Oliveira], presidente da associação de moradores na época, criticava minhas ideias, dizia “Você pensa que o Niemeyer faria desse jeito?”. Para o Oscar disse que, se eu projetasse a passarela, ela poderia tampar o Ciep que ele projetou. Cinco dias depois ele me mandou o croqui, sem cobrar. O engraçado é que, ao desenvolver a passarela, desenhei um puxadinho para ligá-la ao Centro Esportivo. Quando fui mostrar o resultado ao Niemeyer, fiquei ‘branco’, tremendo. Ele disse “isso aqui não tinha, mas ficou bom”.
Além da habitação popular, o senhor se dedicou, em seu mestrado e doutorado, à pesquisa da arquitetura hospitalar. Como a arquitetura pode humanizar esses edifícios?
A arquitetura hospitalar no Brasil que me interessa foi a produzida pelo Lelé. Uma mudança em qualquer área dos hospitais da Rede Sarah é facilmente feita, sem incomodar o paciente, tamanha a flexibilidade dos projetos. A luz entra direto, tem ventilação natural. Ele resolveu alguns problemas que eram limitações na área hospitalar, como a questão do ar condicionado. Se corressem atrás do que ele avançou, a arquitetura hospitalar do Brasil serviria de exemplo para o mundo inteiro.
O CAU/RJ completou três anos desde a sua criação. Qual a importância de ter um Conselho próprio?
Sou um grande fã do Conselho. A vida inteira nós procuramos ter um conselho de arquitetos. Com o Conselho, alguns sonhos meus viraram realidade. Uma das coisas foi o patrocínio ao livro. Essa pesquisa ia ficar limitada a essa rede que a Finep criou e hoje ela vai ser divulgada no Brasil inteiro graças ao CAU/RJ.
A outra coisa é essa parceria com o IAB que o CAU conseguiu consolidar. Essa briga do IAB e do CAU pelo projeto executivo eu também acho formidável. Isso pode baratear a construção, evitar o retrabalho. Se a obrigatoriedade do projeto executivo for aprovada, vai ser uma conquista não só dos arquitetos, mas do povo brasileiro.