No conjunto de atividades interdisciplinares do Planejamento Urbano, um dos aspectos que mais valorizam o papel do arquiteto é o Desenho Urbano, antevendo plenamente o espaço do homem que avulta na história do urbanismo como fator de indução e de disciplina das suas atividades, individuais ou em grupos. Seu alcance ultrapassa questões sociológicas e econômicas, embora o concurso de profissionais de diferentes áreas seja, por óbvio, indispensável ao Planejamento. A cidade é um fenômeno manifestamente físico, retratando, porém, as forças que atuam sobre as sociedades nela assentadas. Assim, é importante que o discurso que segue não seja interpretado como exclusivista, e sim de parcial intenção, valorizando o “traço” (simbólico ou físico) que os fundadores das urbes produziram. Podemos, então, comentar o desenho urbano no seu papel indutor e/ou condutor, como segue.
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Milhares de séculos antes de Cristo, as aglomerações humanas que ganhavam a forma de cidade já apresentavam traçado organizativo, definindo trajetos, caminhos e espaços transitórios ou permanentes, ordenando assentamentos, suas proteções e interações. Nada acidental, antes manifesta vontade do coletivo e seus técnicos e de quem fazia, por exemplo, o cordeamento das primitivas aldeias. A posse e a ordem econômica/política poderiam ser “lidas” nos traçados, definindo ainda os estamentos a que pertenciam os ocupantes do lugar.
Nas ruínas de Mohenjo Daro (3 mil anos A.C.), na Ásia ou nas urbes egípcias, encontramos o simbólico e o pragmático ordenados espacialmente, de modo a definir o pulsar do cotidiano e facultar práticas simbólicas segundo um sentido cultural. As grandes vias dos romanos, destinadas ao acesso da polise aos desfiles triunfais de seus exércitos, mostram o poder do desenho como elemento indutor de atitudes humanas.
O precioso trabalho de Edmund Bacon, Design of Cities (A Studio Book – The Viking Press – New York – 1967) trata das articulações do espaço e suas relações com o tempo, aproximando-se da obra seminal de S. Giedeon, Espaço, Tempo e Arquitetura. Por meio da abordagem da configuração de importantes cidades, Bacon tece suas teorias acerca do papel decisivo do desenho. Como curiosidade a destacar: o autor confessa que, quando divulgado o plano da nova capital brasileira, sua primeira reação à Brasília foi negativa. Contudo, mostrando a humildade própria dos grandes intelectuais, voltou-se para o Plano elaborado por Lúcio Costa e admitiu suas virtudes de desenho, seu arrojo experimental.
No decorrer das obras citadas, também nos são mostradas e exaltadas a Roma de Sixto V e seus grandiloquentes eixos barrocos e a Paris de Haussmann nos 1800. Em ambos, o poder político (do papa ou do Imperador) e a ordem social estão explícitos.
No elenco de intervenções mais amplas, podemos lembrar a reconstrução de Londres após o incêndio no século XVII, que manteve muito dos aspectos medievais da cidade e a notável reurbanização de Lisboa, arrasada pelo terremoto de 1755, sob as ordens do Marquês de Pombal (Sebastião José de Carvalho e Melo), plano atribuído ao Engenheiro-Arquiteto Manoel da Maia (1677-1768). Segundo o historiador, arquiteto e urbanista Nireu Cavalcanti, um estudo do Plano nos mostrará que antecipa muitas das propostas virtuosas de Paris realizadas anos mais tarde. Por razões culturais, ou incidental marketing, sempre mais destacada entre os urbanistas, a intervenção do Barão Haussmann na capital francesa passou a parâmetro mundial de intervenções tão drásticas quanto. As eventuais mazelas e reflexos sociais empalideceram face à grandeza vitoriosas da obra chegada a nossos dias em permanente exaltação.
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Nosso país contemplou, em sua inquietante história, a implantação de cidades a partir da tabula rasa dos territórios a que se destinavam:
A primeira capital planejada foi Teresina (1852), em seguida, Aracaju (1855), e sucessivamente: Belo Horizonte, em 1899, de Aarão Reis; Goiânia, em 1933-35, de Atílio Correia Lima; Brasília, em 1960, de Lúcio Costa; e Palmas, em 1990, de Luís Fernando Cruvinel Teixeira e Walfredo Antunes de Oliveira Filho. Seus desenhos mostram caráter por vezes romântico, por vezes racionalista, sustentados pelas intenções generosas de apontar “formas de viver” – o político, o laboral e o cotidiano – compatíveis com as linhas de pensamento dos autores e de sua época. A partir dos postulados dos projetos, (acredita-se) a sociedade ali assentada viverá melhor.
À exceção de Belo Horizonte (no fim do século XIX), cujo traçado mereceu críticas – pois sua geométrica disposição radial por vezes assentou-se mal em território montanhoso (embora o autor tivesse sido contrariado na escolha do sítio) – os demais planos que lhe sucederam já obedeceram a postulados do modernismo. Entre a proposta teórica e a prática, abrem-se alguns vazios. A propósito, vale transcrever a observação de S. Giedeon em sua obra “Espaço, Tempo e Arquitetura”:
“… Observamos que a arquitetura contemporânea se explica em termos de padrões funcionais ou sociológicos. Ambos, porém, não são suficientes pois são apenas de ordem intelectual, não abrangendo ou revelando a qualidade de sentimento que é subjacente à arquitetura. As cidades são sempre, em cada período, aglomerações de interesses sociais, políticos e econômicos. Consequentemente, mudanças na estrutura urbana são difíceis de realizar.”
(Tradução livre. Fragmento do capítulo “Space and Time. City Planing.”)
Caberia acrescentar que mudanças no pensamento dos homens são ainda mais difíceis e vagarosas.
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A notável reforma imprimida por Pereira Passos no limiar do século XX e da República à cidade do Rio de Janeiro ganhou merecidos estudos marcando definitivamente o imaginário carioca e brasileiro pelo sentido de embelezamento e, mais do que nunca, pelo redesenho de vias e suas articulações caprichosas – intervenções não limitadas ao Centro, mas levadas a outros bairros, como Vila Isabel, São Cristóvão e Marechal Hermes. Paulo de Frontin, um dos mais arrojados companheiros de Passos, também deixou sua marca em outras cidades, como Petrópolis e Cataguases.
Sem espaço para o detalhe de cada um desses belos projetos, fica a certeza de que, em todos eles, a generosidade espacial e a elegância do traçado saltaram aos olhos da população, incorporando-se à cultura urbanística e amortecendo eventuais perdas do acervo arquitetônico colonial e imperial. Terão sido então as intervenções de Passos e seus coadjuvantes as experiências de melhor resposta à consciência dos cidadãos em seu cotidiano, no processo de identificação e carinho com o espaço que habitavam. Não ficam, contudo, ocultas as intenções de apagar os vestígios da monarquia e os lastros lusitanos no espaço brasileiro.
Posterior a Passos, nos chegou a proposta de Alfred Agache (1930). O desenho que expurgava de vez o acanhamento da cidade colonial, com o sentido proposto por Camilo Sitte, ainda que realizada em parte, parece ter esgotado o saudável “maneirismo” no desenho urbano. A experiência truncada encontrou no espaço da Esplanada do Castelo sua melhor expressão. No final dos anos de 1930, a abertura da Avenida Presidente Vargas (ainda presente o uso de premissas de Agache), no Estado Novo, com Henrique Dodsworth na Prefeitura – com a grandiloquência do Estado Novo – perdeu-se em certo mecanicismo. O mesmo mecanicismo agravado na intervenção ousada de Doxiadis, duas décadas mais tarde, subjugando o plano mais ao circular de veículos do que ao viver. Uma perda irreparável do desenho urbano, por incompletude, levando à destruição de bairros e espaços tradicionais (Catumbi, Praça Quinze) e, afinal, aos atuais resgates polêmicos como a implosão do Elevado da Perimetral. A vontade política, uma forte corrente ideológica, se faz presente mais na forma de implementar o Plano do que nas obras realizadas.
A propósito do Plano Piloto de Costa para Brasília, vale lembrar o comentário perspicaz do saudoso arquiteto e urbanista Jorge Wilhen, que identificava o Plano proposto pelos irmãos Roberto como o mais completo – abordando aspectos sociais e econômicos de forma mais clara – mas ressalvando que o Plano de Lúcio Costa, graças a seu engenhoso desenho, criava condições de maior rapidez para “aparecer” e florescer como cidade, atendendo ao projeto político de JK, mentor da aceleração da mudança da capital. Prevaleceu, então, o desenho e o processo de construção da cidade-projeto.
O Plano da Barra, do mesmo Lúcio Costa – trazendo para a rica paisagem carioca o elegante traçado do Novo Distrito Federal – ficou prejudicado pela exclusão absurda do transporte de massa (presente assim um conteúdo ideológico), de conjuntos de habitação para as famílias mais pobres e trabalhadoras, de sistema de tratamento de esgoto e de lixo. A quase solidão do planalto era reproduzida em solo oferecido ao crescimento normal do Rio de Janeiro e sua variada paisagem. As intenções dos Planejadores são nobres e os resultados, por vezes, mesquinhos.
Nos dias de hoje, o Rio ganha projetos ousados, talvez bombásticos, talvez tormentosos, como é o caso do Porto Maravilha, um aparente resgate do urbanismo de Passos, que os cariocas tentam realizar em momento diferente da sociedade – daí lembrarmos as palavras de Giedeon transcritas acima.
Os homens são outros, a população carioca só assim se denomina. Transfigurou-se, porém, mesclada de outras culturas regionais do próprio Brasil e ainda tangida (ou deslumbrada) por parâmetros externos.
De qualquer modo, a cidade parece um organismo com sistemas autonutrientes, desafiando planejadores e, sobretudo, visionários. Tomamos um comentário do escritor angolano Mia Couto sobre o que seria a cidade:
“…a cidade não é um lugar. É a moldura de uma vida, um chão para a memória.” ( Mia Couto em “Pensageiro Frequente” – Editora Caminho – 2010).
É o que mais das vezes nos basta a nós, cidadãos.