“A sociedade industrial é urbana. A cidade é seu horizonte. Ela produz as metrópoles, conurbações, cidades industriais, grandes conjuntos habitacionais. No entanto, fracassa na ordenação desses locais”.
Com estas palavras, Françoise Choay abre seu livro O URBANISMO (Editora Perspectiva – 1979) e passa a comentar a imagem das concentrações urbanas em acelerado crescimento, fazendo forte crítica às soluções miraculosas ou idealizadas para “corrigir” distorções. Adiante, a autora busca uma classificação para as diversas correntes que analisaram o fenômeno urbano. No conjunto de ensaios que compõe a obra – um brilhante esforço de sistematização – destaca-se a postura surpreendente de Jane Jacobs demolindo as teorias que tentavam dar fórum científico às crenças urbanísticas de então. As cidades cresciam, adensavam-se e, eventualmente, adoeciam. Índices mágicos de densidades ideais, os modelos de assentamentos eram ofertas que as “velhas” cidades não absorviam de forma tranquila. E as assimetrias incomodavam os puristas. Roberto Venturi chamou-nos a atenção para a Diversidade como valor urbano. Onde se via a vertigem para o caos, encontrava-se um novo parâmetro de avaliação. Brasília, nos anos 1960, serviu como espécie de “tira-teima”, mostrando ao mundo que formas e funções são aperfeiçoáveis. Os cidadãos, nem tanto.
Outras observações no âmbito da antropologia e da sociologia revelam que a prosperidade e o incrível progresso tecnológico alteraram muito o perfil dos assentamentos urbanos, quer se trate da habitação em particular, ou mais amplamente, da cidade – palco de constantes tensões sócio espaciais.
As megalópoles triunfam, e o fenômeno da conurbação poderá não ter, necessariamente, o significado de caos. As cidades melhoram se e quando as sociedades revelam-se saudáveis. Talvez a função dos urbanistas seja adequar espaços e formas urbanas, deixando para profissionais de outras disciplinas o encargo de ajustar as peças. As articulações serão a nível político, mas sempre a partir de um núcleo menor, movimento difícil de conduzir tendo em vista que as pequenas cidades espelham-se, por vezes de forma grotesca, nas grandes cidades.
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Seja qual for o caminho trilhado pelos urbanistas, a observação do gráfico de crescimento da população mundial a partir do século XVIII é perturbadora. Uma curva que se assemelha à exponencial mostra como entre 1800 e 2005 a população mundial passou de um bilhão para quase 7 bilhões de habitantes. O desenvolvimento científico, a informação e o crescimento da natalidade são interligados, com recíprocas influências na urbanização. As cidades crescem, florescem, deterioram-se, e tentam reerguer-se buscando um difícil e peculiar ponto de equilíbrio. Assim ocorreu com a Paris e a Londres que embevecem o Novo Mundo. O fenômeno americano, quando representado por Nova Iorque, mostra igual movimento. Uma megalópole capaz de regenerar-se.
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QUADRO 1
A população mundial vem mostrando crescimento preocupante. De 1900 a 2000 o número passou de 1,56 bilhão para 6,1 bilhões, concentrando-se nas grandes metrópoles.
O quadro abaixo revela parcialmente a marcha do fenômeno nas grandes cidades:
População | 1900 | 1950 | 2000 |
Paris | 2.714.000 | 2.725.000 | 2.126.000 |
Londres | 6.679.690 | 7.172.000 | |
México | 720.750 | 3.050.000 | 8.605.000 |
São Paulo | 239.820 | 2.227.512 | 10.405.867 |
Rio de Janeiro | 327.871 | 2.326.201 | 5.851.914 |
As pirâmides etárias, fortemente escavadas pelos conflitos de 1914-18 e 1939-45, mostravam as reduções nas populações jovens. A seguir, a prosperidade alcançada no final do século XX, com o eficaz controle da natalidade, os avanços na salubridade e o consequente aumento da longevidade, provocaram significativas distorções naquelas pirâmides. Um indicativo de que a população mundial torna-se longeva, não necessariamente envelhecida. A eficácia da informação e a difusão do conhecimento trazem contribuição significativa ao bem estar humano, para não falarmos na expressiva conquista nas áreas do sanitarismo.
Não ocorrem, no entanto, fenômenos isolados.
Moldados na cidade – berço de avanços e condição de espaço ímpar – os homens produzem a germinação, o crescimento e a corrupção das sociedades às quais pertencem. Uma surpreendente dicotomia, sem dúvida. Assim, as tarefas dos urbanistas, contraditoriamente amplas, interdisciplinares e dependentes de interações de novos conhecimentos e comportamentos, são fortemente afetadas por questões políticas e ideológicas. As grandes concentrações urbanas, independentemente das peculiaridades culturais, geram situações limites nas interações sociais. Prolifera o crime ao lado das conquistas tecnológicas: a estupenda rede de comunicações e a cada vez mais fácil mobilidade levam à transgressão sofisticada e ao acobertamento da delinquência. Conforto e prosperidade são manchados pelas ameaças dos crimes sofisticados.
QUADRO 2
O fenômeno no território brasileiro pode ser apreciado nos dados abaixo, analisando as “manchas” de urbanização – tendentes em muitos casos à conurbação – em algumas das principais cidades do país:
Região Metropolitana | População 2000 | População 2014 (*estimativa – IBGE) | Aumento no Período |
São Paulo | 17.878.703 | 20.661.772 | 2.783.069 |
Rio de Janeiro | 10.705.280 | 11.856.131 | 1.150.851 |
Belo Horizonte | 4.357.942 | 5.198.678 | 840.736 |
Salvador | 3.021.572 | 3.792.317 | 770.745 |
Será então a cidade – símbolo maior da civilização – autofágica? Que rede de proteção pode ser sobre ela estendida de forma a não permitir sua corrupção?
Mundialmente, o fenômeno apresenta patologias variáveis, impedindo uma “receita de intervenção” muitas vezes buscada sob a forma de panaceia e discursos teóricos, remédios de efeitos colaterais discutíveis.
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Para os arquitetos e os urbanistas brasileiros, muito significativa foi a Carta de Atenas, de 1933, quando Le Corbusier enfatizou as funções urbanas, classificando-as e sugerido sua separação, segregando-as em áreas específicas – um verdadeiro horror à “mistura” – e ainda preconizando densidades médias baixas. Surgiu uma espécie de “segmento áureo” de inspiração quase divina (pois não se tem um documento com equações) ou, quem sabe, um algoritmo (para estar na moda) que provasse a magia dos 300 habitantes por hectare proposto e aceito pelos modernistas. Naquele instante, por aqui, tínhamos 39.939.154 habitantes em um território de 8,5 km², e nossa maior cidade ainda era o Rio de Janeiro, com 1.969.969 habitantes, resultando em 1.641,26 habitantes/km². Nos ano de 1950/60, para trazermos as questões à área doméstica, o Rio já possuía áreas favelizadas intensamente ocupadas e a Barra da Tijuca era um grande vazio, ignorada no PIT Metrô por ser ainda pouco habitada. O Tempo e o Espaço nos pregam mais peças do que supõem os urbanistas. Afinal, era razoável que a Barra fosse a oferta mais óbvia, ainda que ignorada pela especulação imobiliária, vez que os acessos (o que hoje diríamos mobilidade) eram difíceis e pouco rentáveis. Para piorar, o Plano de Lúcio Costa privilegiou, repetindo Brasília, o transporte individual. Uma legislação que forçasse alternativas não surgiu e o Plano era a legislação. Hoje, a acessibilidade da Barra é um dos maiores dramas da mobilidade carioca.
QUADRO 3
MUNICÍPIO DO RIO DE JANEIRO | |
População estimada 2014 | 6.453.682 |
População 2010 | 6.320.446 |
Área da unidade territorial (km²) | 1.200,278 |
Densidade demográfica (hab/km²) | 5.265,82 |
Assim, no Brasil, experimentamos os receituários estrangeiros com sucesso relativo, até pela aplicação imperfeita (limitada ou interrompida), como se deu, por exemplo, neste mesmo Rio de Janeiro entre 1930 e 1960, com os Planos de Agache, Dodsworth e Doxiadis. Boas e más consequências puderam ser experimentadas nas citadas intervenções, praxe que se repete em certa medida em nossos dias. A incompletude das obras mostrou-se mais desastrosa do que as propostas ousadas.
Uma política federal de apoio à urbanização requer uma atividade política de líderes e representantes legítimos, gerados a partir de núcleos menores. Como articular, a nível estadual, condições favoráveis à modelagem de uma urbanização sob tais lideranças? A extensão do território brasileiro exigia mais do que políticas regionais e, talvez, surja o convencimento de que municípios fortalecidos, assim como células saudáveis, melhorem o tecido composto pelo homem e seu meio.
A título de simples prospecção tomaríamos três municípios do estado do Rio de Janeiro, âmbito constante de nossas avaliações:
– Campos dos Goytacazes, no extremo norte do estado, vizinho às plataformas de petróleo;
– Itaboraí, no miolo geográfico e afetado pela conturbação da Região Metropolitana e pelo Polo Petroquímico – além de ponto de partida do Arco Rodoviário;
– e Angra dos Reis, abrigando junto de Mangaratiba, portos importantes no extremo do mencionado Arco e ainda um dos significativos portais do turismo do belo estado fluminense.
A deterioração urbana verificada nos três municípios é preocupante, e suas posições estratégicas poderiam servir como polos, desde que aparelhados, para o descongestionamento das outras áreas. As questões da mobilidade, se aí fossem consideradas a sonhada articulação de modais ferroviários, hidroviários e (já existente e privilegiado) rodoviários, facultaria uma urbanização mais saudável e consequente alívio para as demais regiões.
Caso o urbanismo fosse pensado com mais humanidade e menos numerologias.
Ao voltarmos nossas reflexões ao Rio de Janeiro e à sua Região Metropolitana, encontraremos as contradições acima enunciadas sem conseguir mostrar as maiores virtudes da urbanização, significando que nosso estágio civilizatório é incipiente e, sobretudo, insatisfatório. Há um vazio no planejamento, deixando esgarçadas as políticas setoriais, sobretudo no que diz respeito ao saneamento e às questões de mobilidade. De resto, cabe pensar o elenco de medidas aplicáveis (ou desejáveis) para livrar o fenômeno de tais aspectos malignos, estimulando investimentos de modo a equilibrar resultados, criando-se um órgão suprarregional capaz de modelar e articular políticas regionais e municipais.
Caberia uma política nacional descentralizadora a ser experimentada, partindo-se de ações “regionalizantes”, isto é, procurando interpretar as fisionomias do processo nas diferentes regiões brasileiras, afunilando as ações na área estadual e daí, com vistas aos municípios, chegar a uma política municipalista isenta de clientelismo. Poderia representar uma injeção de progresso nos municípios, cuidando para que seu desenvolvimento urbano contemplasse políticas de base, na educação, na saúde e na mobilidade.
Quem sabe, um avanço na cidadania?