O notável acervo de bens e sítios de importância histórica e artística, objeto de tombamento no Brasil, tem sido constante preocupação das categorias intelectuais e autoridades. As ações para preservá-los nem sempre são eficazes e o tempo é o adversário mais implacável neste enfrentamento, pois o espaço construído tende à obsolescência e à ruína caso não se cumpram os preceitos para sua boa preservação, atos cotidianos que mais dependem de consciência cultural do que de recursos.
A rápida evolução tecnológica dos últimos 50 anos fez, também, com que grandes edifícios exigissem profundas revisões de suas instalações. Acompanhando o acelerado processo, a evolução do gosto – fator admitido por Bruno Zevi ao justificar o movimento moderno como indutora de mudanças – passa a ser movida pelo hábil marketing da construção. Um retrato claro é o inevitável e frequente retrofit das edificações exigido pelos avanços na infraestrutura predial e na busca da sustentabilidade – exigência em nossos dias. Em qualquer caso, tais adaptações resultam de um balanço entre custos de manutenção preventiva, a exigir reformas parciais e adaptações constantes, e a “modernização” de modo a atualizar as funções prediais para lhes garantir um melhor desempenho.
A preservação do acervo de edifícios e sítios considerados como patrimônio histórico e artístico e, portanto tombados, é questão mais complexa. Os custos para mantê-los, em geral, são assumidos por poderosas empresas – patrocínios em contrapartida de incentivos – cujos recursos garantam aqueles bens íntegros e disponíveis como testemunho e sobretudo para seu uso, com destino ativo e permanente. Muitas vezes, a destinação ou atividade primitiva (caso de hospitais, por exemplo) inviabiliza-se diante dos avanços tecnológicos do presente.
Para ilustrar o quadro, lembramos dois ícones culturais cariocas em processo de restauro: o Convento de Santo Antônio e o Palácio Capanema (ex-Ministério da Educação e Saúde), epígonos separados por mais de dois séculos e também pelos destinos e significados. Enquanto o Convento, ostensivamente histórico e contrastante em seus traços barrocos, guarda e desempenha nos dias de hoje as mesmas funções para as quais foi criado (edifício religioso), o Palácio padece de diferente problema, pois, além da atividade burocrática, tornara-se espécie de Meca ou escrínio do vocabulário modernista. Deixando de abrigar um Ministério, longe do poder central e sem a aura particular e original do caráter moderno que a quadra exclusiva e contrastante com o entorno lhe emprestavam, corre o risco de morrer no esquecimento, independente das obras que lhe destinarem. Uma vez recuperado, deve ganhar uso intensivo que não despreze aquele seu primitivo significado, mas lhe dê vitalidade. Tenderá à ruína se utilizado apenas como “mostruário” de uma época, bastante questionada em nossos dias.
Edificações tombadas, isoladas ou em conjunto, testemunhos do tempo e do espaço, sempre exigem dos urbanistas critérios de intervenção especiais quanto à historicidade, qualidades estilísticas, adequação espacial e cultural. Deverá o poder público, no entanto, sempre avaliar possíveis formas de uso, uma destinação que as faça pulsar, ainda que isto lhes cause desgaste. A observação vale para imóveis dos setores público ou privado.
Se as construções trazem tantas dificuldades aos planejadores, o espaço urbano e sua dinâmica de uso cotidiano, perdido ou alterado, guardam problemas mais complexos.
Os testemunhos da forma de conceber espaços e a arte de construí-los, a preservação dos inúmeros monumentos e seus entornos -às vezes degradados -tornam-se quase um estorvo, conflitando com o esforço para viver o presente voraz e construir com razoável segurança o futuro incerto. Em alguns momentos, a ausência de tal percepção (ou avaliação?) legou às grandes cidades perdas irreparáveis.
No Rio de Janeiro, à brilhante solução viária nos anos de 1960, com seus espetaculares elevados, correspondeu a destruição absoluta de espaços tradicionais. Para citar: o bairro do Catumbi e a Avenida Paulo de Frontin. Para minimizar, ao menos seus efeitos colaterais, o complemento de tais obras tornou-se inviável ou até impossível, diante das novas visões do urbanismo preservacionista e da dinâmica da metrópole. À indiscutível rapidez de mobilidade de hoje corresponde o irremediável lamento das perdas de um passado… Um preço a pagar? As polêmicas obras do Porto do Rio de Janeiro envolveram a querela da derrubada do elevado. Seu ruído fez esquecer outras questões graves contidas nas soluções daquele espaço e o futuro nos dirá, entre perdas e danos, o que resultou de positivo.
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A percepção dos urbanistas, ao idealizar mais a sociedade pretendida do que o espaço vivido, sempre enfrentará conflitos. Lamentável reconhecer que a leitura urbana é percebida de forma diferente:
– Pela população – envolvida no áspero cotidiano – com exigências imediatistas que atendam, em primeiro lugar, a tranquila mobilidade;
– Pelas autoridades (há exceções?), com objetivos outros. Ansiosas por exercer o poder, realizar obras espetaculares que lhes garanta prestígio e hegemonia política, acabam por deixá-las inacabadas ou mal feitas.
Nossas cidades são retalhadas por planos açodados que respondem às angústias de um presente que logo se torna um passado de ruínas. A experiência ímpar de Brasília, com suas caóticas satélites, mostra o abismo entre o tempo dos homens e o tempo das cidades, destruidor de utopias. Não é de estranhar, assim, que bens e sítios históricos, seculares, sejam abandonados ou sofram intervenções desastrosas e sua custosa manutenção esbarre em conflitos.
Lembremos o Paço Imperial na Praça Quinze, no Centro Histórico carioca, quase ignorado em boa parte do século XX – utilizado como repartição dos Correios. Escapou da ruína para tornar-se parcialmente um Museu e abrigar, com sucesso, exposições e atividades ligadas à cultura. A Praça que o acolhia, porém, já alterada nos séculos por sucessivos aterros, teve seu espaço ferido pelo elevado. A recente derrubada daquela pista causou extensa polêmica (ainda em pauta), não menor do que ao ser construída em 1950-1960, quando prevaleceu a convicção (irrespondível) de que a circulação dos veículos só poderia realizar-se em pistas expressas erguidas acima das tramas das vias saturadas. Em paralelo, a permissividade parecia liberada e o processo de transformação prosseguiu. O histórico Arco do Teles foi esmagado por uma construção que também altera a escala do conjunto de edificações. A construção do anexo ao prédio histórico da Faculdade Cândido Mendes (o secular convento do Carmo) foi absurdamente acatada pelas autoridades do Patrimônio e lá permanece – rompendo a escala local – como um desafio para o futuro.
Em nossos dias, o processo parece avançar.
O Palácio Tiradentes erguido no lugar da velha cadeia – quando se eliminou um testemunho histórico, não esqueçamos – para abrigar a ALERJ, revelou-se obsoleto e, por ser tombado, permanecerá como Museu, ampliando-se testemunhos históricos lá guardados. Bem próximo, seu anexo, uma edificação quase secular e que sofreu, há cerca de 20 anos, uma remodelação (abrigava o Ministério da Viação, na era getuliana) será demolido, considerado insuficiente para abrigar espaços de novos gabinetes. Se demolido este edifício-anexo, amplia-se um vazio incorporado à extensão da “nova Praça Quinze” e que agora, livre do elevado, mantendo como único ponto focal o belo chafariz de Mestre Valentim, exigirá um tratamento urbanístico que incorpore e defina a rua São José, em seu começo. Será uma boa solução urbanística? A demolição do anexo – por aparente “falta de serventia” – será fundamental para aquele espaço? Pensariam seu uso por outra entidade com necessidade de espaço e que estará hoje gastando seus recursos com um aluguel oneroso?
E no imenso acervo carioca temos outros exemplos preocupantes.
Os sobrados da rua da Carioca, constantemente ameaçados, já rompidos em sua cenografia quando aberta a Avenida Paraguai, e sem solução urbanística “mitigadora”, para usar o jargão de nossos dias.
O Museu da Cidade, na Gávea, cedido ao município. Um precioso espécime arquitetônico, em sítio não menos precioso, encontra-se em preocupante estágio de deterioração.
A UFRJ- Universidade Federal do Rio de Janeiro lida com dificuldades para cuidar do belo acervo modernista da Cidade Universitária – deteriorando-se desde os anos de 1950 – chegando ao extremo de implodir parcialmente uma preciosa obra de Jorge Moreira. A mesma entidade tem sob sua responsabilidade a bela edificação do século XIX, o Hospital de São Francisco de Assis na Avenida Presidente Vargas. Os espaços do velho hospital, certamente obsoletos para suas funções, exigirão adaptações drásticas. A disciplinada arquitetura produzida no passado amarrava-se em cânones inadequados à atualidade do atendimento hospitalar. Entretanto, outras funções poderão ser cumpridas pelo edifício, se realizadas reformas internas, modernizando-o sem lhe desfigurar o sóbrio exterior. Dando-lhe vitalidade através do uso intensivo. Não sendo mais um hospital, terá que desaparecer?
O recurso repetido de emprestar às edificações as funções de “Centros Culturais”, ainda que de respeitável nobreza, obriga-os a utilizações especiais e condições de conforto e controle ambiental mais eficazes, elevando seus custos de manutenção. Caberiam outras formas de uso? A instalação de repartições do governo ou mesmo de empresas privadas – sob aluguel e/ou comodato – nestas edificações como alternativa, cingidas por contratos rigorosos para preservá-los, talvez garantissem sua permanência viva de forma econômica. Adaptações internas, aparelhando a edificação para a atualidade, são viáveis, preservando-se a memória, o bem e sua espacialidade urbana.
Tudo leva a crer que se não houver um plano de ações sistemáticas e alocação de recursos, convidando e estimulando a sempre dinâmica e competente iniciativa privada a desfrutar destes imóveis e sítios, teremos a lamentar seu definitivo desaparecimento ou destruição.
Foram criados incentivos para os proprietários de bens tombados, de modo a lhes oferecer estímulos financeiros visando a conservação dos imóveis. Outros incentivos na área municipal estão sendo pensados. Existindo bens do patrimônio federal, estadual e municipal restará a articulação dos poderes com vistas à rápida ação. Afinal, desperdício e abandono não cultivam eleitores.
É importante que a preservação de monumentos e sítios seja um princípio, um indício de cultura e não apenas um modismo passageiro.