“O entendimento de que o arquiteto urbanista tem um papel político nos rumos da própria profissão e na discussão dos rumos das nossas cidades, em conjunto com outros atores sociais, não é um senso comum, pelo contrário”, avalia a mais jovem conselheira do CAU/RJ.
1- Nestes últimos 20 anos, quais as transformações sofridas pela categoria?
Não teria capacidade de avaliar as transformações dos últimos 20 anos. O que posso perceber nos poucos anos que venho militando – a maioria deles ainda no movimento estudantil e apenas cinco anos como profissional – é que, a exceção de algumas iniciativas, a profissão vem se afastando das necessidades reais da sociedade. Uma discussão recorrente no movimento estudantil – e que se perde um pouco na discussão dos profissionais – é qual o papel social do arquiteto nesta sociedade que a cada ano acirra e deixa mais claro suas desigualdades sociais, econômicas e urbanas, por consequência. É claro que os arquitetos e urbanistas não têm a capacidade de transformação das cidades em suas mãos – este é um processo multidisciplinar e que envolve diversos fatores -, mas os arquitetos têm sim um papel político neste debate e que deve ser assumido.
Quanto à postura dos arquitetos enquanto uma categoria organizada percebo que está cada vez mais dispersa. Temos uma visão de empreendedorismo individual e de uma atuação autônoma do arquiteto, como se o mesmo não estivesse submetido à ordem do mundo do trabalho, como todos os trabalhadores. Acredito que isto disperse o sentimento de “categoria”, onde todos se organizariam em prol de causas comuns. Não que elas não existam, pelo contrário, temos diversas pautas, mas a dificuldade de ver essas pautas como coletivas pode ser um motivo para a baixa participação dos arquitetos nas entidades representativas, por exemplo. O entendimento de que o arquiteto tem um papel político nos rumos da própria profissão e na discussão dos rumos das nossas cidades, em conjunto com outros atores sociais, não é um senso comum, pelo contrário.
2- Neste mesmo período, em função dos avanços tecnológicos – em particular a informática – quais as mudanças mais expressivas ocorridas no exercício da profissão?
Minha geração já teve contato direto com as ferramentas da informática ainda durante a graduação. Estas ferramentas trouxeram ganhos inegáveis ao desenvolvimento da arquitetura e do urbanismo, mas também, de certa forma, trouxeram algumas distorções. Estas ferramentas afastaram os arquitetos dos instrumentos de comunicação tradicionais da profissão, como desenho e modelo físico, que embora continuem a fazer parte da grade das universidades, entram de forma acessória da formação do arquiteto. Nos primeiros períodos da faculdade, a praticidade e rapidez das ferramentas digitais se impõem, criando uma relação de criação – em alguns casos muito desvinculada da realidade da construção e mais próximas de um fetiche formal, de um deslumbramento da imagem produzida pelas maquetes virtuais.
As questões ligadas à materialidade da arquitetura e da construção perderam espaço para este mundo digital. Não é raro um arquiteto recém-formado chegar à vida profissional com pouca ou nenhuma noção de como se produz aquilo que se projeta. A alienação em relação ao mundo do trabalho tem se apresentado como uma característica da nossa formação. A discussão dos canteiros e a relação com os trabalhadores produtores do espaço urbano e arquitetônico, tão discutida na década de 70, se perderam. Hoje, são raras as iniciativas de canteiros experimentais, onde os estudantes poderiam ter um contato mais próximo de processos participativos envolvendo a universidade e a sociedade, entre outras que buscam restaurar este elo. Vale citar a grande contribuição dos escritórios modelo de arquitetura, autogestionados pelos estudantes no modelo promovido pela FENEA, que trazem para o âmbito da universidade estas discussões do “mundo real” e realizam uma série de trabalhos que questionam o papel do arquiteto nesta sociedade.
Voltando a questão das ferramentas digitais, é importante perceber que seu uso trouxe também uma rapidez à “produção” dos projetos, que de certa forma exerce uma pressão de prazos e entregas cada vez mais apertados e exploratórios da mão de obra dos arquitetos, orientados pelo ritmo do mercado, que acaba reduzindo a capacidade de criação de soluções. Com prazos cada vez mais curtos, o projeto é tratado apenas como uma etapa de uma indústria da construção que deve ser rápida, simples e eficaz, reduzindo o papel do arquiteto e consolidando uma “produção” arquitetônica anônima, onde a execução e o custo de sobrepõem à qualidade arquitetônica.
3- Como resultado das perguntas anteriores, como você avalia os novos rumos da profissão em relação ao exercício e também ao produto arquitetônico?
No que tange as condições de trabalho, principalmente dos arquitetos mais jovens, vejo uma precarização destas condições no ponto de vista dos direitos. As jornadas de trabalho excessivas, o pagamento por hora trabalhada sem carteira assinada e todos os benefícios trabalhistas significam a dura realidade da maioria dos arquitetos da minha geração. O tão falado piso salarial é sonho distante para a maioria – mesmo os regularizados raramente ganham este valor estimado nos primeiros anos de vida profissional.
4- Em sua opinião, como deve ser a posição de nossas entidades em relação à presença de escritórios e empresas de projetos estrangeiras no mercado de trabalho brasileiro?
Acredito que este não seja um debate central, mas a globalização do capitalismo trouxe inevitavelmente esta questão para a nossa rotina profissional. Não acredito que tenhamos como coibir a ação destes arquitetos estrangeiros no país, nem acho que devamos. O que devemos garantir são condições igualitárias de trabalho, que os escritórios brasileiros de arquitetura não sejam meros compatibilizadores de projetos executivos à nossa realidade, mas que possam trabalhar em parceria de conhecimentos. Que os projetos públicos sejam alvo de concursos abertos e não convites a determinados arquitetos, estrangeiros ou não.
5- Com a saída dos arquitetos e urbanistas do sistema CREA/CONFEA e a criação do CAU – lei Nº 12.378 – deverá se dar a divisão de atuação das demais entidades dos arquitetos?
Acho que as entidades dos arquitetos já têm funções bem estabelecidas e um longo caminho de atuação. Acredito que não se deva ter esse medo de disputa de atuações. O CAU é uma autarquia federal e tem suas atribuições claras, e que não se restringem apenas a uma normatização e fiscalização da profissão, mas uma defesa dos interesses da sociedade. Defendo que o CAU deva ter também um papel político e crítico dos rumos da profissão e que a relação com as entidades deve ser da construção coletiva de um patamar mais elevado de discussão e de ações que levem a profissão ao debate do papel social do arquiteto e de sua capacidade de contribuir com as transformações sociais.
6- Como deverá ser equacionado o sombreamento da atuação profissional entre o arquiteto e o engenheiro civil, já que agora estão filiados em Conselhos próprios?
A lei de criação do CAU já traz em si as atribuições dos arquitetos e urbanistas e seus campos de atuação. Devemos atuar nestes espaços entendendo que alguns deles podem ter relações diretas com outras profissões, como é o caso da engenharia civil. Acredito que esta discussão deve ser feita de forma tranquila, sem disputas calcadas em antigos conflitos. É claro que podemos determinar as ações privativas, como já o fizemos em questões que são claramente do campo da arquitetura e do urbanismo, mas sombreamento profissional em alguns temas é inevitável e devemos tratá-los em acordos e cooperações com as demais profissões. Lembrando que em muitos campos de atuação os arquitetos trabalham de forma multidisciplinar. Assim, o que devemos definir bem não são os campos que cada profissional deve atuar isoladamente, mas as competências que cada profissão tem para atuar.
Fortalecer a importância da profissão do arquiteto e urbanista é o que nos levará para este debate em um patamar de igualdade.
7- Para efetiva aplicação das atribuições profissionais definidas pela Lei Nº 12.378, quais deverão ser as modificações no ensino de arquitetura de modo a adequá-lo ao que estabelece a lei?
Existem atribuições que não são ensinadas na universidade, mas que deveriam ser, ou se não em breve haverá demandas do ensino universitário que não estarão contempladas na Lei. Acho que o CAU deve manter um debate direto e aberto com as universidades, respeitando a autonomia a fim de “corrigir” estas distorções, pensando neste debate como uma via de mão dupla e autocrítica. O que não podemos é, em nome da autonomia, não travar o debate e fingir que não haverá implicações na vida profissional destes novos arquitetos que se formam a cada semestre. É necessário que os arquitetos saiam das universidades aptos a exercer a profissão em sua plenitude.
Para além deste debate direto das atribuições, acho que devemos refletir sobre qual a qualidade do ensino de arquitetura hoje no país, tanto nas universidades públicas quanto nas universidades privadas, frente ao projeto de mercantilização e privatização da educação brasileira em curso na ultima década. É daí que parte o debate central do ensino. Neste sentido, devemos questionar os métodos de avaliação institucional que privilegiam este modelo, como é o caso do ENADE/SINAES aplicado pelo MEC e que este ano será novamente aplicado aos cursos de arquitetura e urbanismo. No meu ponto de vista, este exame atua no sentido contrário à defesa da educação de qualidade, pois não avalia de fato os cursos; fundamenta-se no ranqueamento e na competição entre as instituições e aposta na punição quando deveria propor investimento. Acredito que este seja um debate urgente que deveríamos fazer enquanto CAU em conjunto com as entidades do campo do ensino e com a Federação de Estudantes.
8- Qual a sua opinião sobre a Política Habitacional e Urbana(s) desenvolvida(s) hoje no país?
Desastrosa. Os programas em curso repetem erros, investindo em áreas sem infraestrutura, afastada dos centros, de transporte escasso, produzindo uma arquitetura de baixa qualidade espacial e com o uso de materiais de pouca qualidade, privilegiando as construtoras em detrimento de uma política real de urbanização e habitação. O provimento da moradia não deve se encerrar em si, mas possibilitar uma política de direito à cidade e de justiça social, garantindo a função social da propriedade através dos instrumentos do estatuto da cidade, como, por exemplo, o IPTU progressivo, avanços conquistados já há 10 anos, mas ainda pouco ou nada utilizado.
O caminho lógico seria aproveitar a infraestrutura existente das partes centrais da cidade, as áreas consolidadas que oferecem emprego, transporte, cultura e infraestrutura básica com equipamentos públicos. Neste sentido, os movimentos sociais urbanos que promovem a ocupação de espaços ociosos da cidade exigindo a habitação como um direito fundamental devem ser trazidos para o debate “técnico”. Temos como arquitetos muito a contribuir nesta luta pela ampliação de direitos, mas também muito a aprender com a experiência dos movimentos sociais.
Um caminho para este diálogo foi a criação da Lei que assegura o acesso das famílias de baixa renda à Assistência Técnica Pública e gratuita para o projeto e a construção de Habitação de Interesse Social, mas ainda há muito a se avançar neste sentido.
9- Como você classifica a qualidade da produção arquitetônica e urbanística em nossas cidades e até onde vai a responsabilidade dos arquitetos nestes projetos e obras?
Neste sentido, sou ainda mais pessimista. Penso que a qualidade da massa arquitetônica construída – não estou falando dos projetos isolados de edifícios excepcionais, falo da construção comum, habitacional, comercial – peca tanto do ponto de vista estético como da qualidade de construção. A relação destes edifícios com a cidade é anônima, todos construídos sob os mesmos princípios do aproveitamento máximo dos espaços em unidades cada vez menores. Enfim, uma arquitetura controlada fundamentalmente pelo capital imobiliário para gerar lucros.
Este movimento não se dá por vontade dos arquitetos, mas sua responsabilidade é total, nem que seja por omissão. O capital impõe suas condições e alguns arquitetos se veem obrigados a aceitar, outros procuram caminhos alternativos, quando possível. O que devemos ter é uma visão crítica deste processo e uma luta subterrânea para combatê-lo. Esta luta não se trava no âmbito técnico, mas sim de uma consciência da importância da participação política dos arquitetos nas decisões. Enquanto os arquitetos e urbanistas se omitirem deste debate, fica complicado avançar em uma política mais adequada.
10- Quais deveriam ser as medidas concretas e objetivas de alteração da Lei Nº 8666 para que seja garantido o Concurso Público de Projetos como forma usual de licitação e contratação?
Está na hora de aprofundarmos este debate sobre os concursos públicos de arquitetura. Temos realizado concursos há muitos anos, mas nos falta uma avaliação crítica destes processos. Entendemos o concurso público como a melhor forma de escolha de um projeto em um processo licitatório que envolva um objeto arquitetônico, mas não temos de forma clara e regulamentada as condições de realização destes concursos, trabalhando com critérios e avaliações subjetivas.
No que tange a lei 8666, ela tem diversos problemas que deveriam ser revistos. Um deles é a questão da exigência apenas dos projetos básicos para as licitações, dividindo a execução do projeto em etapas e em muitos casos dando margem aos órgãos para começarem as obras sem os devidos projetos executivos. Esta situação é um desmerecimento do projeto de arquitetura enquanto produto técnico e cultural, que deveria ser contratado de forma completa.
Um agravamento maior desta questão se dá com o debate da ampliação do RDC – Regime Diferenciado de Contratação – que reduz ainda mais o papel do projeto, definindo que este e a construção seriam realizados pela construtora que venha a ser vencedora da licitação. Este regime foi criado como pretexto de reduzir entraves e acelerar as contratações das obras de infraestrutura para a realização da Copa do Mundo e dos Jogos Olímpicos no Brasil, mas abriu um pressuposto para que este regime se estendesse para todas as obras públicas do país, o que tem sido duramente combatido pelas entidades de arquitetura e pelo CAU, conseguindo no dia de hoje uma vitória com o veto no Senado Federal.
Este debate da Lei 8666 deve ter uma participação maciça dos arquitetos para que consigamos avançar nestas questões e assim promover a valorização da profissão e dos profissionais.