As políticas habitacionais no Brasil já alcançam uma longa história, com encaminhamentos diversificados, segundo atores e palcos de desempenho. As demandas por habitação, sobretudo das camadas desfavorecidas (as mais graves), têm sido atendidas ou respondidas com políticas quase improvisadas e, pior, descontínuas. Diante da eventual limitação de recursos (ou má aplicação?), se registram a complexidade do problema humano, as diferentes questões regionais e a velocidade de crescimento da população.
O Rio de Janeiro – em particular a Região Metropolitana – tem sido palco de inúmeras experiências, função das variações que o fenômeno assumiu. As matérias “Tetos sem Risco” e “Habitação – Um persistente desafio” (Boletins de maio 2013 e de setembro de 2013) abordaram as dificuldades encontradas para atender demandas sociais e os insucessos causados por obras improvisadas ou inadequadas. Têm sido tentados a autoconstrução e os “mutirões”, acompanhados de financiamentos para a compra de materiais de construção e o apoio técnico orientador de mão de obra; perduram os já clássicos conjuntos habitacionais, horizontalizados ou verticalizados, com a imposição de “padrões mínimos de espaço” e variantes de tais modalidades.
Observando a história da construção entre nós, constatamos singelamente, que se ampliou a oferta de materiais alternativos (industrialização) e aperfeiçoaram-se os processos no canteiro de obra (tecnologia). A mão de obra, porém, por força das “especializações”, perdeu as primitivas características atribuídas aos “obreiros”: habilidade e versatilidade, herdadas talvez dos antepassados lusitanos, “mestres” que comandavam as obras e delas participavam, não raro colocando “a mão na massa”. Boa parte do subúrbio carioca ainda exibe exemplares arquitetônicos remanescentes de uma época em que aquele “mestre”, empunhando um catálogo, produzia construções possuidoras de certo sabor e excelente qualidade construtiva. A comparação entre as antigas Vilas e modestas “casas para operários” construídas em sequência e os atuais “conjuntos” nos mostram que algo se perdeu de modo irremediável… Por serem outros os tempos e mais prementes as pressões por moradia, cabe responder à demanda, caso a caso, selecionando o melhor instrumental do presente.
Cabe registrar que nas experiências do passado havia um “gosto”, senão um requinte, em busca de uma linguagem arquitetônica espelhada nas construções da classe média. Alteraram-se as características deste grupamento social – antes denominada classe-remediada – ao crescer em renda e perder certos padrões – dentre os quais o quadro humano pertencente a ela, os citados mestres de obra. Logo, restaram dois extremos: uma arquitetura de “simulacros” (os “coloniais” dos conjuntos residenciais de mais elevado padrão); e uma arquitetura sem compromissos estilísticos, marcada pelo pragmatismo funcionalista (mal compreendido). E seria este o padrão, salvo raros espécimes criativos, que permaneceria no imaginário das classes ascendentes e de menor ou baixo poder aquisitivo. Para citar um exemplo que se tornou clássico: o poético “barracão” da favela – na taipa improvisada, nos latões desdobrados a guisa de painéis e usados até nas coberturas (lembremos as belas composições de Orestes Barbosa e de David Nasser) – cedeu lugar às rígidas alvenarias, bem ou mal alinhadas, e às lajes pouco funcionais quanto à proteção térmica, mas cumprindo objetivos recreativos e de sociabilidade. Plasticamente, porém, sem qualquer direcionamento.
Estas considerações remetem à saga de Hassan Fathy, o idealista arquiteto egípcio que conclamou trabalhadores rurais a desenvolver suas casas a partir de seus ideários culturais, orientando-os para erguê-las segundo a tradição das construções em barro, tecnologia rudimentar de milenar eficiência, e realmente integrada ao imaginário dos trabalhadores – ecos talvez da memória dos “felás”. As construções das casas que os abrigaria, embora orientada pelo erudito arquiteto, guardavam organização espacial e expressão plástica consoantes com as tradições e imaginário cultural dos futuros moradores, fator importante na moradia. Esta experiência, descrita no livro de Fathy “Construindo com o povo – Arquitetura para os pobres”, lastimavelmente não teve um final feliz, pois a agência de governo que cuidava do caso preferiu as modernas e ágeis tecnologias dominadas pelo concreto, conveniente às grandes empresas construtoras, abandonando-se o projeto idealista do notável arquiteto.
O registro, porém, não será conclusivo para que se ignorem as alternativas possíveis. Tal como fez Fathy no apoio às comunidades, a autoconstrução seria viável acompanhada por técnicos, recorrendo-se, por exemplo, a bastante conhecida “taipa”, tecnologia tão simples quanto eficaz. O profissional indicaria as dimensões e a melhor orientação dos cômodos, a adequação eventual ao relevo, contornando as perigosas intervenções de desmonte de barrancos para garantir-lhes a estabilidade. Assim, poderiam ser alcançadas soluções econômicas satisfatórias e que recorreriam ao imaginário identificado por seus moradores. Muitos problemas dos “conjuntos residenciais” oferecidos às populações carentes – ou a ela impostos – começam no “estranhamento” do espaço ofertado, fenômeno normal ao ser humano em busca da moradia, independente da categoria social.
Mesmo para a classe média, em faixas de renda mais elevada, a “imposição” de um espaço de moradia (caso do mercado de apartamentos em que a escolha passa por outras instâncias) é superada pelas “reformas” até extravagantes. Trata-se mais, na verdade, de adequação do imaginário do morador e menos uma busca de “funcionalidade”, pois o impulso original, enunciado na operação de compra e venda como “alto padrão”, já fora satisfeito pela escolha do bairro de moradia, envolvido pelo marketing dos incorporadores, pelos ícones de paisagem, facilidades de equipamentos urbanos e existência de infraestrutura. Este elenco, completo ou quase completo, supera ou faz empalidecer outras qualidades esperadas na arquitetura.
Os extensos estudos sobre o déficit de moradia e as propostas para superá-lo não deixam de contemplar as possibilidades tecnológicas. Já citadas, as tecnologias primitivas (caso da taipa) foram sendo ignoradas, até mesmo pela população que guardava este saber – em geral, legado de pai para filho. Embora as novas gerações que atuam nos canteiros de obras sejam formadas para outras práticas, nada impede a revitalização do processo.
Cabe admitir, no entanto, que o enfrentamento do déficit habitacional vem sendo realizado em formas pouco articuladas quanto às possibilidades tecnológicas.
As experiências com a autoconstrução – quando moradores participam espontaneamente de mutirões sob a orientação de arquitetos e engenheiros – podem ter resultados positivos, ampliando o mercado de trabalho e, ao mesmo tempo, formando e aperfeiçoando profissionais. Nestas oportunidades, tecnologias alternativas (derivadas da taipa), podem formar uma – até inesperada – “cultura de qualidade de moradia”, ausente, em geral, nos assentamentos improvisados.
Os pesquisadores da área identificam diversas correntes orientando as intervenções nos aglomerados marginais ao tecido urbano. Desde a Fundação da Casa Popular, nos idos de 1940, até a criação do Banco Nacional da Habitação (BNH) em 1964, a erradicação e o reassentamento foram as formas ostensivas de lidar com o problema. Assim, a unidade residencial nos diferentes partidos – horizontais ou verticais (estes mais aplicados) – obedecia aos padrões da classe média, com espaços ajustados às condições financeiras do grupamento atendido, reduzindo o padrão e dimensões de compartimentos, de forma a “baratear” o custo da obra, apenas repetindo métodos e processos da construção clássica. Perdeu-se, na experiência marcada pela presença do BNH, boa oportunidade de serem desenvolvidas novas tecnologias, como, por exemplo, elementos pré-moldados em concreto armado (utilizados mais para acelerar a obra dos conjuntos da classe média) sem expressivo uso na baixa renda. Experiências adotadas em outros países (no Japão, por exemplo) de produzir “unidades mínimas” de fácil e rápida montagem não chegaram a ser aplicadas entre nós – oportunidade, talvez, para uma interação do trabalho do desenhista industrial com o arquiteto.
Conjuntos residenciais verticalizados, que atualmente pecam mais pela ausência de infraestrutura urbana (equipamentos, mobiliário, sistemas para a mobilidade), ainda são os projetos de maior eficácia técnica, sobretudo pela velocidade de construção e pela possibilidade de concentrar um número maior de famílias. Resultantes de reassentamentos ou de erradicação (preliminar ou paralela às construções) das comunidades frequentemente são envolvidos por interesses paroquiais. Mas ganhariam velocidade em sua execução caso pudessem contar com peças pré-fabricadas, nas áreas molhadas, por exemplo, com o uso de “módulos sanitários”.
Quando a erradicação não se faz necessária, respeitando-se laços comunitários e/ou cívicos com o local de moradia, o caminho mais eficaz é financiar materiais básicos para a construção, peças e implementos para a infraestrutura residencial (elementos sanitários de abastecimento e de esgoto, onde o PVC tem plena aprovação) e garantir a assistência técnica profissional para orientar o desenho e a montagem da unidade residencial. As possibilidades tecnológicas, já mencionadas, tornam-se menos significativas face à empolgação que a comunidade experimentará ao ver florescer melhor organizado seu espaço de moradia. O sentido de “organização”, claro, advém de um saber adquirido pelo profissional e não será entendido como imposição de “modo de viver”. Afinal, profissionais de saúde levam seu saber para as comunidades carentes, não ignorando as “mezinhas” domésticas ou até crenças religiosas, mas não hesitarão em aplicar, quando necessário, modernos antibióticos e a farmacologia consagrada nos livros. Assim, arquitetos e urbanistas podem e devem levar seu saber, seu propósito de organizar o espaço, segundo suas convicções, às comunidades em que atuarem.
No elenco dos problemas, as unidades residenciais e sua construção apenas avultam pelo sentido prático – e essencial – de teto, abrigo e moradia. Por vezes, nos assentamentos improvisados este problema foi resolvido, mesmo de forma precária, mas outros ficam sem solução, agregando riscos mais graves, como a salubridade e a segurança. Ainda ferem aquelas paisagens dos assentamentos os tenebrosos “valões”, com o precário esgoto a céu aberto, as encostas corroídas com risco iminente de deslizamento e fiações emaranhadas em ligações clandestinas. Problemas enfrentados de forma tímida e, pior, intermitente, pelos poderes públicos a quem cabe a iniciativa. Sem este apoio, o cidadão que ocupa aquelas comunidades tende a descolar-se da sociedade.
Um difícil e desafiante campo de trabalho para arquitetos e urbanistas.