“Os arquitetos, apoiados pelas diversas entidades que os congregam e pelos valores próprios de sua natureza profissional, têm como missão retomar a liderança dos processos de pensar a cidade, sua paisagem e seus edifícios”, avalia Silvio Colin.
1-Nestes últimos 20 anos quais as transformações sofridas pela categoria?
As últimas décadas disponibilizaram para o arquiteto significativas transformações no que diz respeito a técnicas e processos de construção e projetação, que vieram a propiciar uma eficiência maior e um resultado melhor ao fruto do seu trabalho. Apresentaram-se novos problemas, sobretudo como consequência das intensas crises mundiais de energia e mobilidade, que modificaram significativamente o espectro de preocupações do arquiteto. Podemos dizer que temos nos saído bem no trato das questões de sustentabilidade e arquitetura da cidade, tendo os projetos recentes apresentado muitas alternativas com respeito a estas questões. Infelizmente, observamos também um achatamento no enfoque da arquitetura, que vem a cada dia que passa se reduzindo a seu aspecto puramente técnico, racional e funcional, abandonando outros planos de ataque que são de natureza estética, fenomenológica e simbólica. Perdeu-se uma rica discussão acontecida no ultimo quartel do século XX, que trouxe para a arquitetura a abordagem linguística e as conquistas teóricas do pós-estruturalismo. Também questões relacionadas ao patrimônio artístico e cultural perderam sua abrangência, ficando restritas a pequenos núcleos em órgãos governamentais e instituições de ensino. As poéticas, como historicismo e o regionalismo crítico, foram praticamente abandonadas. Dominadas por uma ideologia mercadológica e produtivista, os órgãos governamentais e os grandes empresários da construção fazem produzir uma arquitetura em que o trato com o edifício parece já não mais pertencer ao âmbito da criação do arquiteto, mas é determinado por grandes produtores de materiais e sistemas. O resultado é a presença cada vez mais intensa desses monstruosos megaobjetos, que não têm nenhuma afinidade com seu contexto e tanto empobrecem a paisagem de nossas cidades.
2-Neste mesmo período, em função dos avanços tecnológicos em particular a informática, quais as mudanças mais expressivas ocorridas no exercício da profissão?
Sem dúvida, a informática agilizou muito nossas atividades. A internet nos aproximou mais de áreas especificas do conhecimento, programas de projetação paramétrica abriram muitas possibilidades para o arquiteto. Isso foi, sem dúvida, um grande avanço. Porém, esse mundo de arquitetura virtual pode conduzir a resultados enganosos, pois paralelamente ao uso dessas facilidades vem uma inevitável alienação de certos aspectos importantes da atividade. Se ficar provado que aprender a fazer contas com calculadora é melhor do que aprender tabuada, por afinidade, certamente concluiremos que o projeto com programas de computador é melhor do que a antiga prancheta e régua “T”. O que acontece é que estes maravilhosos programas disponibilizados para a atividade projetual cobram o ônus do empobrecimento da atividade perceptiva e criativa. Hoje, nenhum estudante de arquitetura sabe desenho técnico ou mesmo desenho de observação. Sua capacidade de representação é sofrível – o que décadas atrás era o diferencial do arquiteto. É preciso que tenhamos consciência dessa falta e procuremos supri-la para que as benesses da informática não tragam consigo o esvaziamento da consciência projetual.
3- Como resultado das perguntas anteriores, como você avalia os novos rumos da profissão em relação ao exercício e também ao produto arquitetônico?
O produto arquitetônico hoje realiza a hipertrofia das tendências racionalistas e funcionalistas que marcaram o século XX e não dá espaço a diversos planos de crítica de natureza fenomenológica e semiótica, que tiveram alguma voz há décadas atrás e foram responsáveis por uma oxigenação do pensamento arquitetônico de então. Os determinantes da produção arquitetônica parecem ser apenas o lucro, e questões como qualidade de vida, estética, harmonia, contextualização e escala parecem ser ignoradas. O arquiteto é cada vez menos escutado e seus valores historicamente consagrados aparecem cada vez menos nas decisões políticas que envolvem a cidade. Exceção se faça ao tratamento dado a certas grifes arquitetônicas, que servem para valorizar, com seu nome, algum feito político ou governo. Os arquitetos, apoiado pelas diversas entidades que os congregam e pelos valores próprios de sua natureza profissional, têm como missão tentar reverter esse quadro e retomar a liderança dos processos de pensar a cidade, sua paisagem e seus edifícios.
4- Na sua opinião, como deve ser a posição de nossas entidades em relação a presença de escritórios e empresas de projetos estrangeiras no mercado de trabalho brasileiro?
Num mundo globalizado não é possível impedir a presença de escritórios e empresas de projetos estrangeiras no nosso mercado de trabalho. De certa maneira, é até bom que possamos ter aqui os mais diversos exemplos dos distintos pensamentos arquitetônicos de ponta. Assim foi marcada a história da nossa arquitetura, de Grandjean de Montigny a Le Corbusier. É inexplicável, entretanto, nossos governantes preferirem a contratação direta de um grande nome, como temos visto no Rio de Janeiro, por exemplo, em detrimento dos concursos internacionais de ideias, prática excelente para revitalizar uma arquitetura combalida como a nossa e fermentar nossa cultura arquitetônica. Com relação às iniciativas particulares, também serão benéficas desde que resguardadas certas premissas de reserva de mercado, com a exigência de associação a um escritório brasileiro e com a participação ativa e comprovada deste. Nossas entidades profissionais poderiam também incentivar e facilitar, no âmbito de sua atuação, a instrumentação de escritórios brasileiros para que este processo de globalização seja uma via de mão dupla.
5- Com a saída dos arquitetos e urbanistas do sistema CREA/CONFEA e a criação do CAU – lei Nº 12.378 – deverá se dar a divisão de atuação das demais entidades dos arquitetos?
Penso que a criação do CAU não deverá significar uma mudança qualitativa no quadro, embora sua criação responda a uma aspiração dos arquitetos. Os papéis desempenhados pelo IAB, Sindicato de Arquitetos, Asbea e outros deverão continuar os mesmos e, se possível, intensificar sua abrangência. Não vejo também nenhum problema em que haja um cruzamento de atividades, que afinal sempre existiu: o Sindicato com atividades também culturais, o IAB atuando no plano político da categoria etc. Quanto ao CAU, entretanto, muda o fato de que sendo um conselho somente de arquitetos poderá melhor desempenhar sua função relacionada com a sociedade e os governos, lutando para que os valores dos arquitetos – que não são exatamente os mesmos dos engenheiros e agrônomos – possam entrar na pauta das aspirações da sociedade e decisões dos governos.
6- Como deverá ser equacionado o sombreamento da atuação profissional entre o arquiteto e o engenheiro civil, já que agora estão filiados em Conselhos próprios?
As áreas de atuação estão claramente definidas nas respectivas leis de criação dos conselhos. No confronto entre as duas fica claro que cabe ao arquiteto a gestão do espaço em suas diferentes escalas, seja referente a edificações, conjuntos arquitetônicos e monumentos, arquitetura paisagística e de interiores; espaços urbanos, planejamento físico, local, urbano e regional. Para tal, ele, e somente ele, é preparado. É preciso, entretanto que a sociedade e os agentes dos poderes públicos e suas instituições – no caso aquelas que contratam os serviços – conscientizem-se disso, o que nem sempre acontece. É sabido que muitas vezes órgãos públicos contratam engenheiros para desempenhar funções que são afetas somente a arquitetos. Que o CAU seja permanentemente vigilante para que se faça cumprir este espectro de atribuições por quem de direito, recorrendo a todos os fóruns que se fizerem necessários para tal.
7- Para efetiva aplicação das atribuições profissionais definidas pela Lei Nº 12.378, quais deverão ser as modificações no ensino de Arquitetura de modo adequá-lo ao que estabelece a lei?
Embora o ensino de Arquitetura careça de modificações para formar um melhor e mais atualizado profissional, estas modificações estão mais afetas aos órgãos relacionados com o ensino, como o Ministério da Educação e às próprias instituições de ensino. É no ato de licenciamento dos profissionais para o exercício da responsabilidade técnica que está o ponto de atuação do CAU. Este aspecto deveria ser repensado cuidadosamente, aumentando as exigências, fazendo exames de qualificação etc. Isto terá uma influência direta e imediata nos cursos de arquitetura.
8- Qual a sua opinião sobre a Política Habitacional e Urbana(s) desenvolvida(s) hoje no país?
A política habitacional e urbana aqui desenvolvida está frequentemente afastada de quem dela necessita. Como toda atuação política praticada nesse país, tem interesses distintos. Por mais bem justificados que sejam, no papel, as intenções dessas políticas acabam sempre se esvaziando. Não será com a criação de ministérios ou estatutos que este problema, que é estrutural em sua natureza, será resolvido. Por ser estrutural, está ligada a outras questões estruturais, como distribuição de renda, mobilidade urbana, apropriação formal e informal do espaço da cidade, e somente em conjunto estes problemas podem ser atacados, com alguma aspiração a uma solução definitiva. Um grande problema é que a questão do déficit habitacional de interesse social é visto apenas quantitativamente. São oferecidas moradias, como estas do programa Minha Casa Minha Vida, de tal modo carentes de qualidade técnica, espacial ou estética, que são um desrespeito ao usuário e também ao cidadão, que tem que conviver com ela como parte da paisagem urbana. Fico me perguntando se são mesmo arquitetos que projetam esses conjuntos, como aquela monstruosidade da Rua Frei Caneca, no Rio de Janeiro.
9- Como você classifica a qualidade da produção arquitetônica e urbanística em nossas cidades e até onde vai a responsabilidade dos arquitetos nestes projetos e obras?
A abordagem da arquitetura na escala da cidade, urbanística se se quiser, evoluiu muito nas últimas décadas, ensejando uma fenomenologia urbana de grande interesse, que se não dá melhores resultados não é por culpa do pensamento arquitetônico, mas da relativa fragilidade deste pensamento face aos interesses econômicos. No que se refere ao objeto arquitetônico, entretanto, a avaliação é desastrosa. Falando desses mega-objetos de vidro espelhado multicolorido e alumínio composto, que estão infestando nossas cidades, as decisões sobre suas características, imagem, dimensões, materiais e outras, não são tomadas por critérios arquitetônicos, mas por critérios pragmáticos e clichês midiáticos e comerciais, frequentemente de mau gosto e agressivos. Na maioria das vezes, estes edifícios são concebidos sem nenhuma reflexão sobre a relação com a cidade do ponto de vista histórico ou cultural, até mesmo sem nenhum conhecimento desta, ou pelo menos sem lhe atribuir importância decisória. As faculdades de arquitetura têm uma responsabilidade neste estado de coisas, pois vem enfatizando no seu currículo e na sua prática o ensino de resultados e não de reflexão e crítica, que pode ser efetivo para suprimento imediato de mão-de-obra, mas que abre mão de uma característica importante da arquitetura, que é a de ser um vetor cultural e crítico do espaço.
10- Quais deveriam ser as medidas concretas e objetivas de alteração da Lei Nº 8666 para que seja garantido o Concurso Público de Projetos como forma usual de licitação e contratação?
A pauta apresentada recentemente pelas organizações nacionais de Arquitetura e Urbanismo ao governo federal, que tem como principais pontos a interdição do regime diferenciado de contratação, criado pela lei 12 462, separação de responsabilidades entre quem projeta e quem constrói, exigência de um projeto completo e detalhado para licitação, obrigatoriedade de concursos públicos para equipamentos públicos, exigência de projeto completo, e não apenas projeto básico, são um bom começo. Entretanto, como ficou claro naquela ocasião, não basta que uma proposta seja correta tecnicamente, seja prática corriqueira em outros países desenvolvidos, seja necessária ética e moralmente, é preciso também que ela atenda a interesses políticos e eleitorais. O caminho é mais longo do que podemos pensar. É prioritário atuar junto à sociedade, em sua microfísica, em suas entidades, em seus órgãos governamentais e junto aos poderes políticos, para conscientizá-los da importância e da necessidade do arquiteto, algo que ainda não está consolidado atualmente, e conseguir, como o fizeram outras categorias profissionais, o reconhecimento irrestrito, até mesmo do ponto de vista legal e jurídico. De nada adianta pensar em alteração de leis em um país que ao criar as leis cria mecanismos para burlá-la ou descumpri-la. É preciso pensar também em criar mecanismos de atuação que ataquem a crise de representatividade em que vivemos.