Com certa liberdade podemos dizer que, em 1565, após fundar a Muy Leal Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro ao pé do morro Cara de Cão – e, depois, levá-la para o morro do Castelo, onde plantou as fortificações em sua defesa, – o lusitano Estácio de Sá iniciou a geometria de ocupação da terra carioca. A linha no sentido de São Bento, a rua Direita e a trama subsequente, com a vala e as muralhas de defesa, a pontuação espiritual e institucional definida nos templos e nos prédios públicos geraram a cidade mestiça dos séculos XVII e XVIII. Expandindo-se nos aterros e avançando para os pontos cardeais fez-se um desenho que se esgueirava entre as montanhas e afastava o mar com seus aterros. As tentativas de disciplinar o uso e a destinação do solo urbano já se faziam sentir nas primitivas posturas, onde está presente a intenção de ordenar o espaço e dar segurança à população.
Nos séculos XIX e XX, enfraquecidos os toques lusitanos por derrubadas e redesenhos bastante conhecidos, a cidade ingressou no século XXI vivendo os impactos do superpovoamento e dos assentamentos improvisados. Tenta exorcizar as mazelas da deterioração urbana ou minimizar as consequências das investidas especulativas que provocaram um declínio do bem estar de seus habitantes.
Neste aspecto, cabe comentar os conflitos e as contradições criados com as obras – ora tímidas, ora drásticas – quase sempre interrompidas e que prejudicaram a cidade e sua paisagem. Muitos destes conflitos surgiram pelo afluxo de migrantes cujo impacto populacional somado às crises econômicas criou problema de inegável amplitude e de soluções por vezes desastrosas, cabendo reconhecer que o Rio não é nem será mais o mesmo, ainda que enaltecido por poetas e menestréis. Trata-se de outra urbe, consequência de intervenções drásticas, polêmicas e, ironicamente, vitoriosas e sedimentadas na alma de seus ocupantes.
Após o ruído das polêmicas, as intervenções, uma vez assimiladas, costumam ser até glorificadas. Quando realizado o “aterro do Flamengo”– o Rio transformado em Estado –, os protestos foram abafados pelo momento político, mas as apostas no fracasso caíram no olvido ao florescer o belo Parque que afinal resultava da parcial eliminação do morro de Santo Antônio. Caberá esquecer, talvez, as perdas e danos ainda observados no entorno da Lapa e na mal resolvida Avenida Paraguai que se interrompe bruscamente na tradicional rua da Carioca, abandonados os planos da “radial norte-sul” assim desenhada. Quando cruzamos o elevado sobre a primitiva e romântica Avenida Paulo de Frontin, quase esquecemos a ruína urbana provocada pelo traçado eficiente daquela via, ignorando o desenho original dos caminhos abertos por Passos e seus brilhantes engenheiros. Basta observar o que aconteceu com a Praça XV (já abastardada pelos aterros) e com o quase atritar dos bordos dos elevados em concreto com edificações nobres, como o Museu da Marinha. Ou, se deixarmos o Centro, constatar o que restou da sufocada rua Figueira de Melo, em São Cristóvão, sob a hoje indispensável Linha Vermelha acotovelando os interessantes sobrados do início do século XX, perdidos e sucateados naquele novo e desastroso desenho urbano. A recente polêmica em torno da derrubada do elevado no Cais do Porto (Porto Maravilha) ilustra o quadro esboçado.
O maior desastre urbano talvez seja a constatação das obras apressadamente concebidas, iniciadas entre protestos ou aplausos e interrompidas por carência de recursos, frágil vontade política e debates (intencionalmente?) mal conduzidos ou simples descaso.
Entre os mencionados protestos e aplausos, vai sendo remodelada a cidade. Trata-se de pleito de longa data e o que parecia salvador – um Plano Diretor (1992), tornado instrumento legal – ainda não apresentou frutos palpáveis.
Vale uma curta menção aos instrumentos que conduziam as intervenções urbanas e induziriam o crescimento da Cidade.
Remontando ao século XIX (1830), encontramos parâmetros estabelecendo a volumetria dos edifícios e sua relação com as vias públicas, com a intenção de livrar o ambiente urbano de miasmas e construções precárias. Sua Seção Primeira trata explicitamente da Saúde Pública e o primeiro parágrafo proíbe o enterramento de corpos dentro das igrejas. O esgotamento de pântanos e “ágoas infectas” revela o estado sanitário da urbe que crescia.
Já no apagar das luzes do século XX, datada de julho de 1900, registramos a tentativa de dominar a volumetria do Centro:
Cap III – Art XVI – Parágrafo 18 – Nenhum prédio terá altura superior a vez e meia a largura da rua onde for edificado, exceptuando-se no centro da cidade ou das ruas estreitas que poderão ter dois andares e os das ruas mais largas, como Lavradio e outras, que poderão ter dois andares.
E os depois chamados “prismas de iluminação” são assim mencionados:
Cap IV – CASA PARA HABITAÇÃO Art 16 – Na construção dos prédios para habitação se deixará livre área de terreno suficiente para páteos, áreas, jardins, etc. não se aceitando área inferior a 6m2,00.
O bastante conhecido Decreto 6000, de 1937, orientou boa parte das transformações formais da primeira metade do século XX. Ainda sediando o Distrito Federal e sob o governo estado novista, o Rio sofreu fortes transformações. Merecem destaque, entre outros, o tratamento dado às (então assim chamadas) favelas, propondo sua radical eliminação. Com a denominação de “gabarito”, definia-se a altura das edificações – sacramentando a verticalização que se impunha como “progressista” e estimulando os investimentos na área urbana. A mudança absorvia a disponível mão de obra da indústria da construção, principal setor da economia carioca favorecida pelo empobrecimento das áreas rurais adjacentes. Como curiosa contrapartida, o quadro oferecia a ocupação desordenada do solo urbano em morros e periferias, fechando o círculo vicioso de ocupação e imigração.
O Decreto 3800 de 1970, aguardado por arquitetos e urbanistas, envolvidos com a expansão da urbe e a invasão dos carros, trouxe novas posturas para a cidade. A lei Garagem criou padrões para o abrigo de automóveis e a presença desta indústria marcou a evolução urbana então, com os já citados elevados, impostos na categoria de solução urbana e execrados no século que se inicia.
Os anos de 1970, na duração efêmera do Estado da Guanabara, viram grassar legislações pontuais e permissivas, autorizando a verticalização favorável às grandes empresas e à hotelaria, obedecendo à premissa da expansão do capital e à oferta de empregos. Copacabana e Centro guardam os testemunhos daqueles momentos: talvez belos objetos, porém inserções discutíveis.
Sem esquecer a expansão do território ocupado, é conveniente frisar que o crescimento populacional do Rio de Janeiro bem como alguns deslocamentos nas suas densidades devem ser considerados. Em 1900, a cidade contava com cerca de 811 mil habitantes. Em1940, registram-se 1,7 milhões habitantes. Em 1970, (Cidade-Estado) 4,2 milhões. Atualmente, a cidade abriga cerca de 6 milhões de habitantes.
A sequência de legislações para o Rio ganhou apreciação na Dissertação de Mestrado da arquiteta Marília Vicente Borges (Rio de Janeiro 2007) sob o título de “O ZONEAMENTO NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO – Gênese, evolução e aplicação”, onde são confrontados os principais instrumentos citados acima. Outro trabalho importante trata de “NORMAS URBANÍSTICAS E TRANSFORMAÇÕES ESPACIAIS NO RIO DE JANEIRO: Breve Trajetória Histórica”, de Andrea da Rosa Sampaio, um artigo que aborda a influência das normas na configuração da cidade, fazendo convergir seu interesse para um estudo de caso: o bairro de São Cristóvão. E longe de esgotar o assunto, Maria Julieta Nunes de Souza comenta e critica o Plano Diretor em “MEMÓRIAS DE UM PASSADO RECENTE: Revisão do Plano Diretor do Rio de Janeiro” onde lamenta as revisões sofridas pelo Plano ainda de curta vida.
Os trabalhos citados (dentre muitos que tratam a matéria), de qualidade testemunhal, convergem para uma apreciação curiosa: a cidade como um laboratório de experimentos.
Ainda em tramitação no Legislativo, arquitetos e urbanistas aguardam a concretização da LUOS (Legislação do Uso e Ordenação do Solo Urbano) e o novo Código de Obras e Edificações, respectivamente Leis Complementares 33/2013 e 31/2013 que uma vez implantados complementarão a Lei 111, de 01/02/2011 pretendendo disciplinar o crescimento urbano carioca.
Os profissionais que lidarão no cotidiano com este aparato legal ainda não consolidaram suas posições acerca das novas posturas e não parecem convencidos de uma verdadeira renovação em conceitos e propostas.
Se os dispositivos anteriores guardavam o preceito Higienista, – óbvio para uma cidade que sofria com a pestilência e que, contraditoriamente, protestava contra a vacinação – a lógica que preside as proposições na nova LUOS revela-se, sobretudo, ambientalista, política impulsionada por organismos internacionais, sem dúvida indispensável para a população carioca, ameaçada em seu patrimônio paisagístico. Está também explicitada a preocupação com o acervo histórico construído, consolidando instrumentos já existentes. Traz como um eco romântico a possibilidade de serem projetadas “vilas” (tipologia tradicional no início do século XX), como retomada de uma esquecida horizontalidade.
Vale lembrar que a LUOS, ainda em caráter propositivo, foi objeto de um primeiro debate patrocinado por órgãos públicos e por entidades profissionais em 8 de novembro de 2013, em que se comemorava o Dia Mundial do Urbanismo.
No CAU/RJ, quando realizada a apresentação desta Legislação, algumas questões foram levantadas, mas a impressão geral entre os profissionais é a de que a Legislação para o Uso do Solo não trará a contribuição esperada pela categoria. Em que pesem as fixações de parâmetros de densidade e volumetria, as preocupações com a Mobilidade, Sustentabilidade e Acessibilidade Urbanas, para alguns profissionais o avanço ainda é considerado pequeno. Lembrando que a LUOS é um instrumento do PLANO DIRETOR (de 2011) e que os demais instrumentos cuidam de desdobrar as normas para o Licenciamento e Fiscalização e o (ansiosamente esperado) Código de Obras e Edificações percebe-se que a categoria encarregada dos planos e construções urbanas formou, ao longo de tantas transformações, um pensamento crítico que exige respostas concretas.
Como as justificativas para as observações ultrapassariam o espaço desta seção, um resumo delas abordaria: a insatisfação com os índices de aproveitamento de solo (coeficientes máximos e mínimos multiplicadores da área do lote); a expectativa de uma legislação específica para coeficientes de adensamento (a questão da densidade); e a amarração dos parâmetros espaciais das moradias (áreas mínimas). São aspectos do planejamento ainda sob a égide de conceitos oriundos do Zoning, da cidade estruturada funcionalmente no modernismo, e que sempre encontrará defensores.
Entendem ainda os críticos da proposta municipal que sem parâmetros definidos os planejadores permanecerão na expectativa da edição dos PEUs – Projetos de Estruturação Urbana, pontuando as soluções urbanas.
No que concerne às edificações, alguns profissionais contestam a fixação de dimensões mínimas de: compartimentos; vãos de iluminação e ventilação; e demais elementos construtivos. Estariam estes contemplados em Normas Técnicas, recomendadas como boas normas, cabendo ao profissional assumi-las nos projetos sob seu encargo. Um colégio de arquitetos examinaria os projetos sob a luz de tais Normas, propondo ao profissional eventuais adaptações e/ou modificações. As preocupações estéticas da edificação estariam asseguradas, e a qualidade do espaço seria a responsabilidade exclusiva do profissional. É claro que esta posição pressupõe a requalificação dos Cursos de formação profissional.
A análise de um projeto pela municipalidade focaria a questão urbana, verificando-se questões tipológicas, volumetria e adequação aos parâmetros urbanos de uso do solo. A espacialidade, encargo exclusivo do arquiteto, corresponderia à boa prática normativa o que levaria à abreviação da análise dos projetos (já experimentada em processos cibernéticos e logo abandonada), cuja demora na aprovação atormenta profissionais e seus clientes.
No entanto, cabe reconhecer que esta posição não encontra unanimidade entre profissionais. A existência de legislação coercitiva pode ser utilizada pelos projetistas até como escudo no meio urbano, face à pressão dos interesses especulativos sobre o trabalho dos arquitetos, com a queda do padrão espacial das construções. Os conflitos com investidores e incorporadores são quadros recorrentes no desenvolvimento de projetos.
Contudo, a perspectiva que não deve ser perdida diz respeito ao processo de crescimento e expansão populacional brasileiro, suas especificidades históricas e, em consequência, a formação de suas cidades. O Rio de Janeiro tem (ainda) uma densa história de ressonância cultural, dado relevante para os que nela intervêm.
Seria oportuno que em paralelo ao debate que se realiza no legislativo, os órgãos de classe buscassem, através de seminários e encontros, as indispensáveis convergências visando aprimorar e enriquecer a legislação em foco.