“No momento atual que o Brasil virou o país da moda, devemos fortalecer nossos órgãos de classe e respeitar nossa legislação. De qualquer maneira, a presença de escritórios estrangeiros deve ser estimulada sempre em parceria com escritórios nacionais”, afirma o arquiteto e urbanista e Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Pablo Benetti.
1 – Nestes últimos 20 anos quais as transformações sofridas pela categoria?
Acho que, nestes últimos vinte anos, os arquitetos viraram claramente arquitetos – urbanistas e tiveram a oportunidade de ter uma visão mais integral da sua profissão incluindo a cidade como elemento fundamental do pensamento arquitetônico e urbanístico. Esta ampliação de escala estava presente nos modernos, de maneira muito distorcida e autoritária, salvo casos muito especiais – como Affonso Eduardo Reidy. Hoje, a noção de que não se faz boa arquitetura sem uma boa cidade é muito presente, ao mesmo tempo, o olhar ingênuo e autoritário para o projeto urbano cedeu espaço para a consciência de que o projeto é uma construção coletiva na qual o arquiteto tem um papel importante, mas não único.
2 – Neste mesmo período, em função dos avanços tecnológicos em particular a informática, quais as mudanças mais expressivas ocorridas no exercício da profissão?
A mudança mais significativa é o avanço na compatibilização e coordenação de projetos possibilitados pelo uso das mesmas plataformas em todas as disciplinas. Por outro lado, a informática acabou com a noção de escala, o que é muito ruim. Antigamente, o avanço do projeto passava por varias escalas “afinando“ em cada etapa e mudando de escala de 1:1000, 1:250, 1:50, 1:25, 1:10, 1:1 de acordo com o avanço do trabalho. Hoje, a tela do computador “não tem escala“ e isto produz a falsa sensação de que o projeto esteja definido quando muitas vezes não passa de um rabisco inicial. Em compensação, os avanços tecnológicos permitem usar as ferramentas de representação digital como auxiliares diretas do projeto. Antigamente, as perspectivas eram o produto final, hoje podem ser produto inicial e contribuir para definir o projeto.
3 – Como resultado das perguntas anteriores, como você avalia os novos rumos da profissão em relação ao exercício e também ao produto arquitetônico?
Acho que o exercício profissional ficou mais complexo e requer, de fato, mais estudo e preparação, há uma rápida obsolescência de conceitos, técnicas e tecnologias, o que nos obriga a uma atualização mais permanente. Os tempos atuais são mais velozes, interligados e conectados. Em relação ao produto arquitetônico, os perigos colocados pelo uso simplificado da tecnologia devem obrigar os órgãos de classe a exigir consistência e respeito ao projeto, entendendo isto como prioridade aos conceitos e a materialidade das propostas.
4 – Na sua opinião, como deve ser a posição de nossas entidades em relação a presença de escritórios e empresas de projetos estrangeiras no mercado de trabalho brasileiro?
Nós devemos pautar nossa atuação pela reciprocidade, muitos colegas nossos (migrantes para Europa e Estados Unidos) sofreram horrores para poder exercer a profissão nestes locais. No momento atual que o Brasil virou, o país da moda, devemos fortalecer nossos órgãos de classe e respeitar nossa legislação. De qualquer maneira, a presença de escritórios estrangeiros deve ser estimulada sempre em parceria com escritórios nacionais.
5 – Com a saída dos arquitetos e urbanistas do sistema CREA/CONFEA e a criação do CAU – lei Nº 12.378 – deverá se dar a divisão de atuação das demais entidades dos arquitetos?
O CAU é fruto do esforço das entidades (IAB, FNA, ASBEA, ABEA, ABAP) que entenderam a importância de criação do Conselho próprio. Ele é fruto da luta e do acordo destas entidades e deve ter sempre claro que a elas deve sua existência. Contar com a contribuição vigilante de cada umas das entidades, nos aspectos específicos do seu trabalho institucional, é fundamental. Assim, o CAU deveria estabelecer a sistemática de consulta às entidades que o criaram como forma de fortalecer as visões específicas do exercício profissional que elas espelham. Em muitos países não há esta divisão entre Conselho e entidades de classe, sendo uma única organização. O fato de termos optado por este formato não pode significar que o CAU se “autonomiza“ em relação às entidades que o criaram. Por sua vez, as entidades devem ter enorme consciência do seu papel na sociedade e da contribuição que cada uma pode dar para a edificação de um a sociedade mais democrática, um país mais justo e cidades melhores para todos. Neste contexto, o exercício profissional é um aspecto fundamental, mas não o único.
6 – Como deverá ser equacionado o sombreamento da atuação profissional entre o arquiteto e o engenheiro civil, já que agora estão filiados em Conselhos próprios?
Nós, arquitetos, temos nossas atribuições estabelecidas em lei. Os engenheiros civis, pelo contrário, tem as atribuições estabelecidas por resoluções. Então, do ponto de vista legal, nossas atribuições estão perfeitamente garantidas. Dito isto, acho que sempre caberá o diálogo, mas sem abrir mão do consagrado na Lei. Nós criamos um conselho próprio porque acreditamos na centralidade do projeto no exercício profissional, isto nos diferencia enormemente da categoria dos engenheiros, com os quais trabalhamos e continuaremos trabalhando juntos.
7 – Para efetiva aplicação das atribuições profissionais definidas pela Lei Nº 12.378, quais deverão ser as modificações no ensino de Arquitetura de modo adequá-lo ao que estabelece a lei?
O CAU significou para nós arquitetos uma carta de alforria em relação às atribuições profissionais. O ridículo entendimento corrente no CREA de que a cada atribuição profissional corresponderia uma disciplina acabou engessando sobremaneira a estrutura curricular em nossas faculdades. Muitas reformas curriculares fracassaram ou não foram tão bem sucedidas porque estávamos sob o jugo do CREA e seu entendimento meramente cartorial do exercício profissional. Acho que agora a conjuntura mudou para melhor, nós temos a possibilidade de entender que a formação do arquiteto urbanista é holística e generalista, o que equivale a dizer que ela começa na graduação, mas de fato não se esgota na mesma. O título é uma primeira autorização para trabalhar em determinada área, mas são tantas as atribuições e faces possíveis do exercício profissional que seria simplesmente irresponsável afirmar que em todas elas o nosso graduando esteja integralmente capacitado. Ele deverá estar inicialmente capacitado, mas não podemos ter a pretensão de que este percurso esteja concluído na faculdade.
Áreas muito específicas como restauro, paisagismo, arquitetura de interiores, projeto hospitalar, projeto urbano, para citar apenas algumas, vão demandar do nosso formando uma atualização permanente. A graduação deve abrir a porta de cada uma delas, mas certamente não as esgota.
As estruturas curriculares nesta nova conjuntura devem ser repensadas para simplificá-las, torná-las mais ágeis, dando prioridade de fato ao projeto e colocando esta disciplina no centro da estrutura curricular que deve ser, sobretudo, integrada, interdisciplinar, aberta e flexível.
Eu espero que o CAU tenha este entendimento e legisle de maneira aberta, sem impor constrangimentos e sem sentido cartorial como o antigo CREA fazia.
8 – Qual a sua opinião sobre a Política Habitacional e Urbana(s) desenvolvida(s) hoje no país?
Historicamente, o déficit habitacional esteve concentrado exatamente nas camadas de baixa renda que nunca tiveram recursos para fazer frente à demanda por habitação. A política atual deu um enorme passo na direção e entende esta questão de conceder subsídios para esta camada de renda, que sem este subsídio o déficit continuaria a subir.
Esta transferência de renda do Estado para as camadas mais pobres não apenas é necessária como legítima, ela é a base de uma oferta habitacional consistente nos nossos dias. O problema tem sido a velocidade e a maneira em que este déficit tem sido encarado. A crise internacional transformou a política habitacional, sobretudo, numa política antirrecessiva, de pleno emprego e movimentação do mercado interno. Se conjunturalmente isto é muito bom – haja vista que o Brasil está passando pela crise sem desemprego – do ponto de vista urbano e habitacional, temos problemas.
A velocidade de produção imposta por esta lógica tem determinado uma produção habitacional repetitiva (quanto mais igual melhor), não adaptada as variáveis regionais, onde o projeto não tem tido a centralidade necessária.
Habitações localizadas, distantes de tudo, tem sido produzidas sem considerar que a política habitacional deveria ser, sobretudo, uma política de construção de cidade. Prolongar extensivamente a trama urbana, em baixa densidade, sem transporte eficiente em um modelo de cidade dispersa, pode ser bom para as empreiteiras que conseguem terras baratas, mas certamente não são boas opções nem para a cidade nem para o cidadão.
Os efeitos de uma política habitacional demoram vinte anos para serem sentidos na sua crueldade, eu espero que nos possamos corrigir o rumo da atual política muito antes disso, dando prioridade ao projeto, a variedade tipológica, a flexibilidade das habitações, a mistura de usos e camadas de renda, a densificação da cidade, ao conforto ambiental a eficiência energética a sustentabilidade urbana e social das habitações.
9 – Como você classifica a qualidade da produção arquitetônica e urbanística em nossas cidades e até onde vai a responsabilidade dos arquitetos nestes projetos e obras?
A maior parte da cidade é edificada sem a participação de arquitetos, não apenas sob a forma de autoconstrução, mas também sob a forma de lógicas imobiliárias que privilegiam o lucro e não a qualidade arquitetônica e urbana. Nós vivemos na época da cidade desregulada, neoliberal, onde para alguns tudo pode e para a maioria, a legislação impede qualquer ato criativo. O zoneamento – na forma atual – é um mecanismo de produzir objetos idênticos que deem a garantia de reprodução do mesmo objeto no terreno vizinho, quanto mais igual melhor será para o capital imobiliário. O resultado disto é também uma cidade desigual, não misturada, onde o igual mora do lado do igual.
Nestas condições atuais, a criatividade só se faz presente nas margens, naquilo que escapa a esta vontade normativa, sejam residências individuais ou projetos de novos programas onde a normatização ainda não chegou ou é indefinida. Os concursos organizados pelo IAB tem mostrado isto, há qualidade, há competência de nossos colegas, faltam – e muito – as condições para exercer esta capacidade. A produção de qualidade não afeta a maioria da produção arquitetônica que já nasce definida por outras demandas (maior número de metros quadrados por terreno, mesmo produto imobiliário, estratégias comerciais, etc) onde a arquitetura entra como objeto decorativo na medida em que volumetria e forma de ocupação foram anteriormente definidas por outros interesses.
10 – Quais deveriam ser as medidas concretas e objetivas de alteração da Lei Nº 8666 para que seja garantido o Concurso Público de Projetos como forma usual de licitação e contratação?
Acho que qualquer obra pública deveria ser objeto de concurso, isto pode figurar no texto da lei. O capital privado tem liberdade para exercer a forma de contratação que desejar – inclusive o concurso – mas o poder público, que usa nossos recursos, deveria ter a obrigação de zelar pela qualidade da construção e para isto o concurso é a melhor opção. Se vigorasse, um elefante branco como a Cidade de Música não teria sido construído. O prazo de quatro anos de renovação dos mandatos aliado a falta de política de planejamento tem dificultado esta prática e levado os governantes frequentemente a encontrar o atalho da licitação apenas com projeto básico ou a contratar os “amigos” do rei. O concurso público não apenas é mais democrático como também é uma garantia de qualidade.